«Se dizemos que a Humanidade de Deus nos atingiu em nossa própria humanidade, o que devemos pensar da humanidade quando ela está des-figurada e ferida? O que crer quando a humanidade se desfigura e se desfaz? A tarefa da cristologia é a de afirmar a toda força que a Humanidade de Deus também está agindo, e em primeiro lugar, naqueles em que o rosto humano se desfigurou.
Porém, o que autoriza afirmar isto? A identificação de Jesus com os pobres. Mateus 25 não pode ter um sentido somente moral. Temos de pensar que esta identificação misteriosa do Filho do Homem com os pobres não é pretexto para justificar a injustiça nem a miséria. Não. Jesus se revela como o pobre entre os pobres, como o pobre mais pobre. A identificação de Jesus pobre e kenótico com os pobres da terra é o descenso de Jesus até o mais fundo, até o mais desfigurado do homem e do humano. Jesus, o Filho do Homem, não vem só para a condição humana realizada, mas vem para encontrar a condição desfigurada do homem, na figura abjeta do humano: os pobres da terra.
O Verbo encarnado de Deus é tratado de maneira inumana. Paradoxalmente, é na condição maltratada e humilhada que ele manifestou sua verdadeira humanidade. A cruz é lugar da revelação da Humanidade de Deus. O Filho do Homem veio ao encontro do homem e baixou até os abismos de sua desumanização. E desde o fundo das profundidades tenebrosas, a Humanidade de Deus aparece humanizando os pobres e maltra-tados. Não é que Jesus sofra em lugar dos sofredores, não é que Jesus assuma a pobreza e a inumanidade em lugar dos desumanizados e pobres; o sentido profundo da identificação de Deus com eles é que se criou uma espécie de comunidade de sofrimento entre eles e Jesus pobre e humilhado. Por isso se pode dizer com propriedade que eles são re-crucificados com ele, e ele com eles. “Dor com Cristo doloroso, quebranto com Cristo quebrantado” (EE 203). Não é possível conceber esta comunidade de sofrimento entre Jesus pobre e os pobres da terra se não nos inserimos solidariamente, qualquer que seja nossa condição humana, nesta comunidade sui generis, que somente encontra sentido n’Aquele que passou pela morte e que vive para sempre.»
Manuel Hurtado. Novas Cristologias: ontem e hoje – algumas tarefas da Cristologia contemporânea.
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