Existem muitos motivos pelos quais alguém não goste – ou deixe de gostar – de você: incompatibilidade de gênios, incompatibilidade de valores, incompatibilidade de tempo, pode ter perdido a graça, você pode magoar muito a pessoa, fazer algo de que ela não tenha gostado, pode ser que alguém tenha inventado coisas sobre você e a outra pessoa acreditou, enfim, motivos não faltam.
Sempre é algo que tem a ver com você. Mesmo quando a outra pessoa diz “não é você, sou eu”, você se insere no problema: se a pessoa tem um problema com você, significa que, apesar de não ser sua responsabilidade o fato de ela ter um problema com você, ela tem e assume a responsabilidade por isso. Não importa de quem seja a responsabilidade, o problema é da pessoa com você – quer dizer, você precisa pelo menos existir e ser perceptível para que alguém tenha algum problema com você.
Agora, pode ser que a outra pessoa não tenha um problema com você (o problema não está em você, está nela), e esse problema seja que ela projeta as outras pessoas com as quais ela teve algum problema em você. Quer dizer, dessa vez não é você, mas não é você de maneira absoluta. Não é que ela tenha algum problema com você, mas ela tem um problema com outros e você não pode se aproximar apenas porque os outros foram projetados sobre você. A questão deixa de ser um “não é você, sou eu”, e passa a ser “você não é: o problema é meu com os outros mas prefiro atribuir a você tudo o que os outros fizeram para poder me relacionar com eles”. A única coisa que você se torna, nessa equação, é um banco, uma conta-refugo: tudo o que a outra pessoa não gosta nos outros ela projeta em cima de você, e você passa a ser como os outros. Para uma pessoa assim, você não é você: você é os outros e os outros, pelos menos, eram alguma coisa além daquilo que têm de desagradável. Você apenas consegue ser, para essa pessoa, um nada passível de receber as projeções de tudo de ruim que essa pessoa vê nos outros.
Esse sistema é a base dos preconceitos, eu acho: projeta-se nos negros uma inferioridade que eles não possuem, mas que é projetada neles; projeta-se nos homossexuais uma anti-nauturalidade que não existe em nada, mas as pessoas preferem ver apenas a projeção; projeta-se nas mulheres uma deficiência que elas não possuem, mas é mais fácil julgar-se um ser ilimitado e projetar as limitações humanas em um dos sexos, deixando ao outro a capacidade exclusiva de superar os limites – afinal homens são potencialmente ilimitados, e as mulheres sempre estarão sujeitas aos ciclos menstruais, gravidez e apego aos filhos (pergunte a qualquer machista se a idéia geral não é esta).
No meu caso em particular, minha querida, isso assume um formato ao mesmo tempo novo como o futuro e antigo como o céu: já é velha a história de se proojetar sobre uma pessoa valores e atitudes consideradas típicas de um ou outro sexo – afinal, homens são de marte, e mulheres, de vênus. O que não deixa de ser verdade, mas somente no sentido de que são hábitos aprendidos e muito bem condicionados, e não que seja da natureza – mas enfim, quem sou eu para vociferar contra séculos e séculos de tradição segregacionista? Uma pessoa em particular pode ter tido experiências desagradáveis com pessoas de um determinado sexo, e projetar sobre uma destas pessoas tudo de ruim que passou com as outras. Essa, aliás, é uma capacidade comum a ambos os sexos, assim como a capacidade de não assumir que fazem isso, e atribuir isso ao outro sexo sempre. Você, particularmente, teve experiências desagradáveis com muitos homens (deve ter tido algumas agradáveis, também, senão não seria predominantemente heterossexual). Tudo o que eu tenho inegaelmente em comum com eles é um pênis dependurado no meio das pernas e pelos saindo pelos buracos mais inimagináveis que há. De resto, você não me conhece. Pensa que me conhece ao atribuir tudo o que eu faço àquilo que tenho no meio das pernas, e, por causa disso, atribuir meus motivos, minhas palavras, tudo o que eu sou, aos outros, à semelhança eterna, ao “você é como fulano”, “igualzinho ao beltrano”, etc.
Mas você realmente não me conhece. Por incapacidade ou pura falta de interesse? Eu não sei. Mas tudo o que você sabe de mim é aquilo que você projetou em mim baseada somente em algo que eu tenho dependurado no meio das pernas (de tamanho variável, mas que com certeza nunca chega a 0,5% do resto do meu corpo), e sem considerar coisas que não são corpóreas mas que também fazem parte de mim. Nada disso chegou até você. Tudo o que você vê em mim que não tenha sido inventado por você é 0,5% do que eu sou (0,25% ou menos, aliás, considerando que as pessoas não são feitas somente de matéria), mas sobre esses 0,0…01% você conseguiu criar algo inteiramente novo, feito com pedaços de outras pessoas, colados em mim por você, criando um frankstein de refugos emocionais visível – e existente – somente para você. Tudo o que você sabe sobre mim é o que você decidiu que, para você, eu seria…
Eu não sei se, com isto, eu posso mesmo sentir raiva de você.
Estive propenso a pensar que, sendo um problema exclusivamente seu, não haveria porque eu deixar de gostar de você, e respeitar todo o tempo do mundo solicitado. Mas de repente me dei conta disso e quis ficar, finalmente com raiva. Mas raiva de quê??? Das suas ilusões? Mas você nem sabe que é uma ilusão sua! Não posso nem responsabilizar você por isso! Poderia ter raiva da limitação do seu olhar, mas se eu tivesse que ter raiva das limitações de todas as pessoas, teria que odiar toda a humanidade, inclusive a mim. Poderia ter raiva da sua obstinação em apegar-se às suas ilusões – essa responsabilidade, sim, você tem.
Mas eu também me apeguei obstinadamente às minhas ilusões, eu também projetei sobre você um “você” que não existia. Eu também projetei em você tudo de bom que eu espero das pessoas. Diga-se a meu favor que, pouco a pouco, fui desmistificando as ilusões que eu tinha criado sobre você, menos uma, pelo menos: a de que você não tinha a mentalidadezinha provinciana típica “desta terra que eu amei desde guri” (como diz o clássico gaúcho que toca nesse momento lá na rua). É deste apego que eu quero, que eu preciso me desfazer. Se eu consigo, eu já não sei, não posso afirmar.
Mas, de qualquer modo, o que mais me magoa, se eu acertei nas considerações que eu fiz, é que nem posso dizer que nossa amizade terminou porque eu fiz alguma coisa: o que mais me magoa é que meu único papel era o de ser, para você, uma estrutura vazia e sem vida sobre a qual você pudesse depositar tudo o que não pode aceitar nos outros – e por mais que eu goste de você (não está ao meu alcance não gostar de você), não gosto o suficiente para aceitar ser a lixeira da sua vida.