“Pode-se dizer que a relação entre a fé e a razão, para não se deturpar, exige três principais momentos: 1 – preparação para a fé pela razão; 2 – ato da fé; 3 – inteligência do conteúdo da fé. No entanto, nem sempre se transita livremente e sem sobressaltos de um para outro momento passando-se por essas três etapas.
A interação entre esses três momentos é o itinerário ideal desejado para o cristão, todavia essas três etapas não se exigem mutuamente. Apenas o primeiro momento se impõe: pois, obrigatoriamente, só pode crer quem é dotado de razão (os animais não creem); quem não possui razão (no sentido de pensamento) não pode crer e assentir com a fé. A razão é condição primeira de possibilidade da própria fé.
Daí para diante – após a primeira etapa das relações entre a fé e a razão – surgem em campo outros fatores fundamentais para a continuidade da interação (da afirmação da fé); um deles é, por exemplo, a vontade, que pode levar à interação dessas etapas ou romper sua continuidade¹5. Por exemplo: a deliberação da vontade pode nos afastar da fé, recusando e rejeitando o ato da fé. Nesse caso, o movimento das relações entre a fé e a razão é esvaziado de seu significado e meta. Quando isso não ocorre, e o assentimento da razão se embasa na vontade, o processo continua na direção de certa intelecção da revelação.
Em suma, sob a conduta da fé, a razão não se extravia como acontece com os filósofos guiados exclusivamente pela razão. Esse seria o caso de alguns filósofos gregos nos quais Santo Agostinho se inspirou: Platão e Plotino. Eles viam a verdade e a almejavam (“trata-se da doutrina mais próxima da verdade cristã e dela devemos nos utilizar”); no entanto não possuíam os meios para alcançá-la (a verdadeira filosofia para Santo Agostinho era aquela que, não contente em mostrar fins, fornece meios para alcançá-los).
Toda filosofia que pretenda bastar-se a si mesma se equivocará, errará (os erros de Platão e de Aristóteles são os de uma razão autônoma), de modo que o único método seguro é o de ter a revelação como guia, a fim de se chegar a alguma inteligência de seu conteúdo. Em outras palavras, a razão só alcança a verdade com o auxílio da fé. A razão é impotente para abarcar e esgotar a verdade. Ela é convidada a crer, é-lhe pedido que compreenda a necessidade de crer se quiser compreender outras coisas.
A razão é inseparável da fé em seu exercício, pois não basta a si própria. Essa fórmula, tão estranha aos modernos e aos preconizadores de uma razão soberana, passa a ser a marca distintiva do itinerário agostiniano rumo à verdade.
Retomando alguns aspectos das relações entre fé e razão, nota-se que crer é um ato do pensamento”. Para crer, para ter fé, é preciso pensar; todo aquele que crê pensa, crendo pensa, pensando crê.
Eis a resposta de Santo Agostinho a quem perguntasse sobre a ordem da intelecção e da fé, isto é, se devemos primeiro compreender” para crer ou crer para depois compreender No Sermão 45, on sobre o sentido da intelecção e da fé, diz que todos querem entender, mas nem todos querem crer. Se lhe dissessem: “compreenda para crer”, responderia, “crê para que compreendas” (Intelligam, ut credam; respondeo: Crede, ut intelligas”) acrescentando o versículo de Isaías: “se não crerdes, não compreendereis” (nisi credideritis, non intellegetis; Is 7, 9).
Diz o Hiponense, em seguida, que em parte tem razão aquele que diz “compreenda para crer” visto que ele (Santo Agostinho) fala para que creiam aqueles que não creem e sem entenderem o que ele diz não podem crer. Logo, é em parte verdade que se “compreender para crer” e também o que Santo Agostinho diz conforme o profeta: “crê para compreender”. E já que ambos têm razão, acrescenta: “Portanto compreende para crer, crê para compreender” (Ergo intellige, ut credas; crede, ut intelligas). E encer ra o Sermão dizendo como esses termos devem ser entendidos: “Compre ende minha palavra para crer; crê para que compreendas a palavra de Deus” (Intellige, ut credas, verbum meum; crede, ut intelligas verbum Dei).
Há razões para crer; uma delas é ser razoável, não confiar apenas na razão. Outra: a fé não é um fim em si mesmo, mas deve conduzir à intelecção. A fé, em si mesma, também pode se extraviar”. Ambos os termos são indissociáveis no percurso rumo à verdade.”
Mariana Paolozzi Sérvulo da Cunha. Santo Agostinho: fé e razão na busca da verdade.
Imagem: Niklas Ohlrogge on Unsplash