A desfiguração de Cristo

Acreditar em Deus sempre implica em um comprometimento que, no fim das contas, diz mais sobre quem crê do que sobre Deus – mais ou menos como o Pedro de Freud, que quando fala sobre Paulo, revela mais de si mesmo do que de Paulo.

Não que Deus seja como o bicho-papão de Harry Potter, que neste caso mudaria conforme a fé e não conforme o medo de quem se aproxima; mas se Deus é tal como é seja lá como for, ele não é como quer a fé do crente só porque sua fé quer assim. Deus – ao contrário do bicho-papão, convém dizer – se revela tal como é mas entre véus e sombras provenientes de nós, e no entanto não se reduz a estes véus e sombras, o que deveria ser lembrado tanto quanto por quem fala de Deus quanto por quem ouve o que se fala, especialmente quando quem fala se esquece que “ninguém jamais viu o Pai, a não ser aquele que vem de junto de Deus” (algum versículo entre Jo 6,41 e 51).

A fé no poder, na supremacia e na condição absolutamente vitoriosa de Deus, muito em voga hoje em dia, não está de maneira nenhuma errada; mas a parte do poder, da supremacia e da vitória é demasiadamente propagada, a ponto de substituir o próprio Deus, como se pode ver em quem acredita que a derrota, a miséria e as desgraças significam a ausência de Deus, quando na verdade isto é consequência da ausência de fé (não necessariamente ausente em quem sofre estes males) ou, pelo menos, deste deslocamento da fé, de Deus para a vitória, o poder, etc.

Às vezes os males de alguém podem até ser pela falta de fé em Deus, mas eu aposto (quer dizer, chuto, porque saber mesmo eu não sei) que na maioria das vezes, refletem a ausência da fé da coletividade em seu entorno que poderia ter evitado ou minimizado as consequências destes males, por exemplo(segue um possível gatilho): um jovem que se mata, como este que brincou de beijo gay, foi hostilizado como se fosse mesmo gay e se matou pela homofobia que sofreu; não dá para afirmar, pelo suicídio, nem que tinha nem que não tinha fé em Deus, mas a falta de fé alheia, dos que foram hostilizá-lo no tik-tok, é muito evidente.

Se bem que deduzir que este tipo de pessoas, que vai hostilizar outras na internet, não acredita em Deus, também não está certo: se a fé que tem em Deus inclui a permissão para a homofobia (que não poupou nem o garoto que depois tentou explicar, em vão, que nem gay era), então talvez haja sim fé, só que em algum tipo de divindade homofóbica, um Senhor dos bullyings (e não dos exércitos, como na Bíblia) e pai da intolerância – que em qualquer caso ou significa um erro grave de qualquer igreja cristã minimamente decente, que se enganaria muito ao pregar um Deus que que é amor (quem sabe por uma adulteração dos monges copistas, que podem ter trocado um eventual “ódio” por “amor” no texto original); ou significa uma fé que desconfigura Deus, tal qual Cristo desfigurado de tanto sofrimento na Paixão (e crer em Cristo mesmo desfigurado pela violência é muito diferente de desfigurá-lo pela violência).

Já a fé em um Deus que se fez criança, e até menos ainda, um aglomerado de células que iam virar um feto (para depois nascer, crescer, etc.), que certamente é muito mais difundida, é a que parece estar menos em voga hoje em dia, pois não foi este tipo de fé que foi propagada na vitória deste governo eleito (segundo sua própria crença) em nome de Deus – se bem que todos os reis de Israel também governavam em nome de Deus, e a maioria deles foi desaprovada pelo próprio Deus.

A falta de fé é uma condição sombria, mas não é o ateísmo que está nos levando a ficar na fila da doação de ossos no açougue (entre outros exemplos da nossa decadência social sob este governo), e sim esta fé que desfigura Deus e também ao próximo, na medida em que a fé em Deus não proíbe que o próximo seja tratado pior do que os cães que antigamente eram os que corriam atrás dos ossos para roer os restinhos de carne presos neles.