As graças de Deus não recebem este nome gratuitamente, pois Deus as concede de graça. Mas a ideia de que “não existe almoço grátis” vale também para estas graças, que são gratuitas apenas da parte de quem as recebe – pois Deus não paga ninguém com graças e dons, já que não deve nada a ninguém. Até mesmo a maior graça, a nossa salvação, não é mérito nosso, embora tenha sido paga por Cristo na cruz.
Chamamos estes dons de Deus de “graças” pelo mesmo motivo que chamamos um dos cartões do banco de “crédito”, e aqui as coisas se tornam confusas porque eu nunca entendi direito isto, mas vá lá: o crédito que o banco nos dá é um crédito do ponto de vista do banco, porque na contabilidade deles, esse empréstimo aparece como um crédito que eles tem a receber de nós, e não um crédito que ele nos dá, mas eu posso ter entendido errado isso, ou, pior ainda, ter entendido certo e explicado errado.
Mas se eu entendi certo, um crédito é terrível para todos os envolvidos: o banco tem um crédito que não sabe se vai receber, e quem usa esse crédito não sabe se vai poder pagar. É pior pra quem usa, e de qualquer maneira, na prática, a banca o banco nunca perde.
O “crédito” de Deus, que são as suas graças, não exigem pagamento (e não são terríveis), mas de graça é só para nós, pois se não fizemos nada pra merecê-las, ficamos em débito com Deus por recebê-las. É claro que, diferente dos bancos, Deus não vai pôr o nome de ninguém no SPC nem tirar a casa de quem eventualmente não dê conta dos débitos para com Deus (porque já foram pagos por Cristo), então tudo fica na conta da boa vontade: as graças que recebemos servem a algum propósito divino.
Nada disto é novidade: São Paulo já deixou escrito que “tudo se faça para a edificação comum” (1Cor 14,26), o Catecismo da Igreja Católica também repete que “qualquer que seja o seu carácter, por vezes extraordinário, como o dom dos milagres ou das línguas, os carismas estão ordenados para a graça santificante e têm por finalidade o bem comum da Igreja. Estão ao serviço da caridade que edifica a Igreja.” (CIC 2003), ou seja, não basta usar as graças de Deus para satisfazer os critérios de bom uso delas, mas é necessário usá-las principalmente para o bem alheio.
Por isto que São Paulo, ainda no mesmo capítulo 14, dá preferência ao dom da profecia (não no sentido de “adivinhação”) que ao de línguas. O dom de línguas supõe fé e a presença de Deus, mas a profecia supõe as mesmas coisas sem, no entanto, centrar-se em quem foi agraciado, e sim em contemplar todos – quem recebeu a graça, quem está em volta, e Deus. Por mais que algumas graças extraordinárias possam até ser divertidas (como o dom da bilocação, por exemplo), a ideia não é fazer delas exposições em um picadeiro – isso cabe aos artistas circenses e aos X-Men, nos divertir com suas habilidades.