Eu sempre achei curioso, e às vezes meio perturbador, que na letra do Credo Campesino (não sei de quem é a autoria, mas nada se iguala à interpretação de Mercedes Sosa, exceto, talvez, pelo dueto entre ela e Nana Moskouri), Pilatos, o pretor de Jesus golpeado, torturado com escárnios e martirizado na cruz, um romano imperialista, desalmado e (eis o adjetivo curioso e perturbador) “puñetero”.
A princípio me pareceu que fosse só mais um xingamento, menos sério do que imperialista e desalmado, para ridicularizá-lo, e esta se tornou uma das dúvidas menores da vida que me acompanham há anos, até que eu fui no google tradutor e descobri que punẽtero, em espanhol, significa sangrento (por isto agora acho que, em portguês, Pilatos seria “o romano imperialista, sanguinolento e desalmado”, mas continua o tom de ridicularização, porque “sanguinolento” me remete inevitavelmente ao Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro).
Acredito que sangrento seja puñetero porque um puñetazo (um soco) pode muito bem ser sangrento, e mesmo que não tire sangue, um soco sempre é violento como quase qualquer coisa que também possa ser chamada de sangrenta. E aí eu entendi (sem nunca ter me perguntado isso antes) que o brasileiro “punheta” vem de punho, pois um homem se masturba com os punhos. Resolvida esta dúvida, veio a questão da siririca: de onde vem esta palavra? Se punheta se refere aos punhos, siririca vem do quê?
Tem um peixe com este nome, mas ele não se parece em nada com uma vagina ou uma mulher se masturbando; mas, aparentemente, siririca também é um dos nomes que se dá a um anzol emplumado, então eu suponho que o formato de gancho do dedo na siririca em uma vagina peluda combine bem com um anzol emplumado.
Além de dúvidas menores, estas reflexões sobre o puñetero do Credo Campesino sempre foram questões marginais a uma outra dúvida com a qual volta e meia eu me ocupo: porque a masturbação é um pecado? O Catecismo dedica um parágrafo inteiro (2352), desdobrado em duas partes, à masturbação, dentro da doutrina sobre o sexto mandamento (“não cometer adultério”), compreendido como um mandamento que diz respeito não somente ao adultério em si, mas a toda a sexualidade humana (2336). Porém no catecismo a masturbação não é, pelo menos diretamente, um pecado contra o matrimônio, e sim contra a castidade.
Os parágrafos do 2351 ao 2356 formam uma lista de ofensas contra a castidade que, aparentemente, vai das mais leves às mais pesadas (pois começa pela luxúria e termina no estupro). A parte que cabe à masturbação é ser um ato “intrínseca e gravemente desordenado”. A primeira vez que eu li isto, me soou parecido com o Severo Snape, eu acho que em Ordem da Fênix (talvez tenha sido em Cálice de Fogo, mas é no livro em que eles estão se preparando para as provas dos Níveis Ordinários de Magia, em todo caso), quando ele diz, ameaçadoramente, que aqueles que forem mal nos NOMs sofrerão o seu (suspense: terror? vingança? uma morte lenta e cruel?) desagrado, que pode parecer um alívio, se bem que o desagrado de Snape poderia ser bastante terrível, dada a sua habilidade tanto em poções quanto em magia das trevas. De qualquer forma, foi neste tom que eu li no Catecismo que a masturbação é um ato “intrínseca e gravemente…” (pecaminoso? imoral? indecente? mortal?) “desordenado”.
Sempre que se fala em males menores, aparece alguém para lembrar que “de grão em grão, a galinha enche o papo”, ou seja, que pequenos problemas, isolados, são quase que irrelevantes, mas o seu acúmulo pode se tornar algo grave e muito maior do que o que se esperava. Então por muito tempo me pareceu que era isto: o problema da masturbação é que é um probleminha que, acumulado, aí vira coisa pior. Foi o que me disse uma freira, uma vez: para não encanar com a masturbação, a não ser que fosse frequente e/ou virasse um vício.
Mas eu encanei, não com a masturbação, e sim com o “intrínseca e gravemente”: isto significa que o problema da masturbação não depende de quantidade, apenas um grão já é problemático, ainda mais que além de intrínseco, é gravemente alguma coisa: desordenado (grande coisa!).
Junto com isto, as terríveis admoestações dos pregadores de internet sobre o assunto: “não pode comungar quem se masturbou!”, “é um pecado grave e, portanto, mortal!”, foram algumas coisas que eu li por aí. Mas a única gravidade da masturbação à qual o catecismo se refere é o seu caráter desordenado, e eu sempre achei bem difícil acreditar que alguém vá para o inferno por causa de bagunça (que é como eu entendo “desordenado”). Fora isto, pode-se “cavar” uma gravidade maior de modo indireto: no parágrafo 2390, lê-se que “[fora do matrimônio, o ato sexual] constitui sempre um pecado grave e exclui da comunhão sacramental”, e no parágrafo da masturbação, o 2352, lê-se que “o uso deliberado da faculdade sexual fora das normais relações conjugais contradiz a finalidade da mesma”; então, juntando tudo, aí estaria a gravidade da masturbação.
Mas ainda assim é uma relação forçada e muito indireta: a masturbação é uma ofensa à castidade (que em qualquer caso precisa ser guardada: a maneira como o catecismo trata a castidade é quase uma poesia), enquanto que o 2390 fala sobre sexo fora do casamento em geral (incluindo heterossexualidade, homossexualidade, solteiros, casados, praticado seja por padres, freiras ou leigos casados). Talvez o terror que os discursos anti-masturbação inspirem venha do fato de terem como objetivo apenas de causar o terror, e não de querer explicar o problema e o seu tipo de gravidade, pois, diante de tantas violências sexuais (estas sim, explicitamente condenadas, e com força, pelo catecismo) e das dores de cabeça mais sérias que envolvem o sexo (os corações partidos e as relações sem prazer, por exemplo), a masturbação não só parece, como de fato (eu acho que) é, uma questão muito menor.
Mas o seu pequeno tamanho também não significa irrelevância. Assim com é um ato “intrínseca e gravemente desordenado”, o próprio catecismo reconhece que coisas como a angústia, da qual a masturbação ajuda a reduzir a pressão, atenua e reduz a culpabilidade moral. O que a masturbação parece ser, no fundo, é um indício de um problema e também uma solução com um grande potencial de ela própria se tornar, igualmente, outro problema, seja no lugar do problema original ou acrescentado a ele.
Talvez seja mais compreensível pensá-la como o problema do cheque especial, que nem é um problema, e sim uma solução: surge uma necessidade inesperada, e ele está lá para resolver (nem sei se ainda existe cheque especial, para falar a verdade), ou houve um gasto inesperado, e sempre tem o cheque especial para cobrir o susto. É dolorido, porque é um dinheiro mais caro, mas vira um foco de atenção mesmo quando, no mês seguinte, o dinheiro para pagar o cheque especial falta para alguma outra coisa esperada, e aí é necessário usar, de novo, o cheque especial, e seguem-se os meses, sempre usando o cheque especial para cobrir um buraco aberto porque foi preciso pagar o cheque especial do mês anterior, mas as necessidades e os gastos inesperados, por sua própria natureza, não vão esperar até que dê para se organizar para fechar o buraco que começou na primeira vez que foi preciso entrar no cheque especial, e portanto podem acontecer, novamente, antes que a pessoa consiga ter se organizado. É claro que o normal é que alguém entre no cheque especial, e consiga se apertar no mês seguinte para incluí-lo nas despesas do mês sem precisar usá-lo de novo – mas quem consegue isto hoje em dia?
Usar cheque especial é, portanto, “intrínseca e gravemente desordenado”, porque significa que algo está tão bagunçado que alguém não tinha uma reserva a mais naquele mês – e pode ser que seja uma pessoa bagunçada, assim como pode ser o contexto econômico bagunçado (desordenado) a ponto de levar até as pessoas mais organizadas a entrarem no cheque especial.
A bagunça intrínseca e grave que leva à masturbação pode ser uma coisa passageira, ou pode ser o sinal de algo pior (pois, por exemplo, homens que somente entendem por “mulher” alguma que se pareça com as da capa da Playboy estão numa bagunça tamanha que “bagunça” não expressa a gravidade e as consequências disto). A pressão que precisa ser aliviada pela masturbação pode ser que seja a de um período difícil, mas uma vida sob constante pressão a ponto de exigir um igualmente constante alívio também é uma desordem, e uma desordem grave. E pode ser que seja a pessoa é que tenha se metido em problemas que deixem tudo bagunçado, mas também pode ser que o contexto no qual vivemos, sob um governo que, nos seus melhores momentos, é no máximo um governo desastrado (embora muito mais frequentemente seja um governo bolsonarista vil, mesquinho, e despreparado, quase sempre descambando para a violência e opressão, para ficar numa listagem não exaustiva dos seus males).
Existem ativistas para tudo hoje em dia, inclusive há um ativismo contra a masturbação. Pode parecer ridículo, e talvez pareça mesmo, se for um ativismo focado em pepecas e pirocas que, exceto em casos de transtornos psíquicos ou de pessoas maldosas, via de regra as pessoas têm condições de administrar muito bem sem ajuda de nenhum ativista. Mas se o foco deste ativismo forem as condições indignas sob as quais as pessoas estão submetidas a ponto de a masturbação se tornar uma tábua de salvação, então ele é um grande benefício.
Mas a questão não era nem criticar os ativistas, nem os pregadores da internet que tocam o terror condenando ao inferno quem se masturba (embora eles, os pregadores, mereçam ser criticados), e sim tentar entender o que existe de tão ruim na masturbação a ponto de, mesmo sendo um assunto irrelevante, merecer ser mencionada na doutrina da Igreja (pois é um assunto que às vezes parece uma paranoia exagerada de saudosistas da Idade Média): afinal a masturbação, em si, apesar de ser “intrínseca e gravemente etc.”, é um problema menor, que habitualmente beira a irrelevância; mas sua prática disseminada, que poderia ser um sinal de liberdade e prazer, na verdade é um sinal do quanto estamos vergados sob uma realidade política, econômica e social intencionalmente injusta, opressora e maldosa.