Lc 16,9

Onde Cristo sugere que se faça amigos com o dinheiro desonesto, uma interpretação forçada e descontextualizada poderia concluir que roubar é bom – ou que, pelo menos, é uma sugestão de Cristo.

Forçando a interpretação para outro lado, pode ser que Cristo esteja apenas dizendo, implicitamente, que não existe dinheiro honesto: um centavo ou um milhão contém em si a mesma quantia de desonestidade, quer venha de um trabalho honesto, quer seja o lucro de algum pecado. Neste caso o dinhheiro é sempre, por definição, sujo. Forçando um pouco mais a barra desta intepretação, mesmo o sexo pode ou não ser santo, mas o dinheiro, nunca.

Uma solução esperta poderia ser dar todo o dinheiro à Igreja, livrando-se assim desta impureza vil e deixando-a nas mãos de quem está suficientemente perto de Deus para não se contaminar; quem sugerisse isto, se é que já não foi sugerido por aí, além de roubar aplicando um golpe religioso-financeiro, teria que apagar o versículo 9 do capítulo 16 de Lucas, pois Cristo sugere exatamente o contrário, a depeito da desonestidade intrínseca do dinheiro: usá-lo em benefício dos outros.

Eu não acho que Cristo esteja condenando quem usa o dinheiro para si, pois até dar um dinheiro custa outro dinheiro, e além disto, ninguém é de ferro. O problema é não compartilhar e, pior ainda, o apego emocional ao dinheiro que a incapacidade de compartilhar pressupõe.

Quando lemos “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, o termo grego que Lucas usa é “mamonnas” (ou “mammonnas”, ou “mammonas”, eu não tenho certeza de quantos emes e enes tem no meio da palavra), cujo radical é “mamon”, um termo hebraico que tem a ver com dinheiro, mas também se transformou numa personificação do dinheiro em uma divindade – e quem não paga um dízimo a algum banco hoje em dia?

Se você procurar “mamon” no google e for parar no verbete correspondente da Wikipedia, vai ver lá que o papa Bento XVI disse em algum discurso que (estou citando de cabeça porque se eu abrir mais uma janela no computador para conferir, trava tudo aqui – fica aí a sugestão para me doarem um computador com SSD, mas nada menor que 300 GB, por favor, porque menos que isso eu prefiro tentar fazer uma ligação de pendrives em série) “mamon”, no fim das contas, significa não admitir perder nos negócios financeiros – e o melhor exemplo disto seria, acho eu, as concessões à iniciativa privada, nas quais o governo continua gastando com o que foi concedido, pagando à empresa que administra a concessão, e a empresa nunca perde dinheiro (basta ver a linha 4-amarela do metrô de SP ou o apagão no Amapá, que quem está resolvendo, ainda que com muita má vontade, é o governo e não a concessionária que não tem vontade nenhuma de resolver, seja ela boa ou má).

A pobreza alheia é um mal que mancha não o pobre, mas os outros que tem mais que ele, pois se é verdade que é um problema sistêmico e nenhuma ação individual vai resolvê-lo, não é porque não dá para resolver que não seja responsabilidade de todas as pessoas: quanto mais rico, mais responsável; mas até quem consegue, no máximo, se virar com um ou dois salários mínimos também tem responsabilidade nisto. Enquanto apoiarmos que alguém possa ter quantias imensuráveis de dinheiro enquanto outros ficam com uma carência inversamente proporcional, todos nós vamos estar sustentando toda esta pobreza, coletivamente, e se não formos capazes de ajudar quem precisa, ainda estaremos apoiando isto pessoalmente.