O mundo natural

Pintei meus cabelos dia desses. O mundo veio abaixo (causou mais comoção o meu cabelitcho do que as mortes no Iraque ou o perigo que paira sobre o Aquífero Guarani). Uma das coisas que mais ouvi foi: você não se ama como é e por isso tem que mudar de cabelo para se gostar – ou seja, você é anti-natural.
Primeiro, entendendo o que os outros querem dizer: as pessoas pressupõem que uma pessoa pinta os cabelos, coloca piercings, faz tatuagens, etc, só porque não gosta do corpo tal como ele é (“ao natural”). Mas não cogitam a possibilidade de você gostar dos seus cabelos (e do resto do seu corpo) como são (e, “ao natural”, os meus são lindos, modéstia à parte), mas gostar deles também em outras cores (se minha “natureza” fosse ser mala, eu poderia dizer até que somente as pessoas que pintam o cabelo realmente gostam do seu cabelo, pois gostam deles em todas as cores e tonalidades possíveis, e não somente com sua cor “natural” – mas não penso isso). Quer dizer, trata-se de uma monogamia estética que fundamenta-se na regra do Terceiro Excluído (Aristóteles): se você gosta de X, necessariamente você odeia Y. Se você gosta de X e de Y, procure um cérebro pois você não tem um. Traduzindo para esta situação em particular: se você adorna seu corpo, você não gosta dele sem adornos (“anti-naturais”). Impossível que você goste de si tanto de cabelos vermelhos quanto de cabelos raspados: de alguma maneira você deve se odiar. A natureza, aí, é ser sempre do mesmo modo como se nasceu. Simples assim.
Porém: se eu fosse do mesmo modo que era quando nasci, ainda seria careca, diria gugu-dádá e engatinharia até a universidade. As pessoas crescem e mudam. “Mas são mudanças naturais, já previstas nos seus genes, etc”. Então agora natureza é ser fiel a seus genes. Tá, então vamos parar de dar vacinas para as pessoas, pois, “naturalmente”, uma pessoa deve morrer ao ser picada por uma cobra ou comer uma salada com salmonela. Eu gostaria de ver um padre que é contra homossexuais argumentar que homossexualidade é anti-natural, e viver no calorão sem ventilador – já que o ventilador também é muito antinatural, não deixando o calor do sol exercer toda a sua potência, dada por Deus para que seja utilizada. Aliás, não somente os ventiladores e os homossexuais deveriam ser expulsos do planeta: todas as roupas do mundo devem ser queimadas junto com os andróginos, todas as casas devem ser derrubadas com as abortistas dentro (as casas dos castores e os ninhos de passarinhos também), as cenouras de coloração laranja devem ser proibidas de ser comidas (a cor “natural” da cenoura não é essa que conhecemos), toda a linguagem humana também deve acabar, pois nunca se viu uma abóbora lendo Cervantes ou conversando com sua vizinha couve, que absurdo! (provavelmente, elas estariam falando mal da cenoura, que é anti-natural, e falar mal do vizinho também é pecado, e não seria possível pecar falando mal do vizinho se não falássemos).
Claro que restaria um problema: as baleias também seriam proibidas de conversar? Como já foi dito antes, os castores e os passarinhos também não poderiam construir casas? Mas o argumento seria que tudo que os bichinhos fazem é natural. E, claro, as pessoas não são bichinhos, mas sim o ápice da criação. Ora, faça-me o favor!!!!
Toda essa conversa de coisas naturais é tão-somente um discurso que vingou, que deu certo, que colou. Assim como toda a cultura humana. Desde a violência contra a mulher até a cr dos meus cabelos, é sempre uma questão de convencer a outra pessoa de que você tem razão e ela, não.
Claro que existe toda uma configuração social em que predominam determinados valores (se você tem mais dinheiro, seu discurso é o que cola; se a sua beleza for próxima da beleza da Gisele Bündchen, seu discurso é o que cola (se a sua beleza for próxima da beleza da Maria do Socorro que mora ali na esquina, pobre de você, se você achá-la bonita, você não se dá ao valor); se você fez pós-doutorado em Frankfurt, seu discurso é o que cola; se você usa batina branca, um cajado e se chama “papa”, seu discurso é o que cola; etc, etc.
Mas é sempre uma questão de qual discurso que cola. De quem convence quem. “A Verdade”, “O Bem”, “O Belo”, “A Natureza”, não passam de uma trova muito bem dada que colou.
Portanto, meu cabelo não deve nada a um cabelo não pintado (tanto quanto uma bissexual não deve nada para uma mãe de três filhos tão tradicional quanto mijar para a frente – e vice-versa também).
É bom saber que meu cabelo é solidário às grandes causas sociais do mundo moderno. Defender a valorização da mulher e a diversidade sexual, por exemplo, também é defender meu cabelo – e vice-versa.