The sound of music

A muitos e muitos anos, talvez também em uma galáxia muito distante, mas com certeza nesta, tinha um cigarro chamado Lark. Era o único cigarro que eu fumava de besta. Eu me sentia, olha só que estranho, a música da propaganda. A letra era “Lá, lá, Lark”, mas escrita assim, sem som, fica sem graça. Até porque não se tratava tanto da letra da música, mas do som (e importância da letra entrava somente porque o som delas também era bom: se fosse “Larque”, “Larq”, “L’Arc”, “Lahrc”, não faria diferença).
As diferenças entre as diferentes escritas de um mesmo som somente têm importância na escrita. Em uma conversa, não existe diferença entre “casar” e “casá”, “mi dá um beiju” e “me dá um beijo”. Esse é um problema unicamente da escrita, que é um registro. Por outro lado, a escrita compartilha alguns problemas com a conversa: “Minha mãe disse que ela queria casar comigo” é uma declaração incestuosa ou uma fofoca sobre aquela menina?. Isso pode deixar parecer que a escrita é mais clara, mais confiável.
A escrita é, ao menos pode ser, mais calculada. Falar é sempre mais espontâneo, é algo mais direto. E é sempre um complemento, até muito importante, mas complementar. Ouvir “eu te amo” não é apenas decodificar uma mensagem. Ouvir “eu te amo” implica também em sentir o calor do corpo de quuem fala, em olhar os olhos, o olhar, a forma do corpo de quem fala, em sentir a mão percorrendo a pele, os cabelos, em sentir a respiração ali na frente, outra respiração em nossa frente que também diz “eu te amo”, sem, no entanto, formular frase alguma, sem letras, apenas som e calor. Falar “eu te amo” já é amar (desconsiderando os casos de falsidade, de mentira; mas nunca podemos ter certeza da intenção alheia, somente pode-se confiar, e confiar já é, também, amar), porque já é toda essa maneira de dizer “eu te amo” também sem as palavras: com o corpo, com os sons, com o calor, com o contato entre as peles, as línguas, as bocas, com as respirações que acabam se tornando a mesma respiração, dois corpos, duas respirações que não se fundem, não se tornam uma mesma coisa, mas sim duas coisas que compartilham algo que somente essas duas coisas (coisas: corpo, respiração, pessoa) conseguem compartilhar. Nunca participei de Swing, menage a trois, nem de nada que envolvesse mais de três pessoas peladas e qualquer coisa parecida com sexo (mezzo falta de interesse, mezzo falta de oportunidade; mais ou menos assim: nas vezes em que tive curiosidade, faltou oportunidade, e nas poucas oportunidades que tive, não tive interesse – às vezes, porque o grupo ou alguns dos componentes não compensavam, ou por ter outras coisas para fazer; enfim, dei toda essa explicação só para dizer “nunca fiz, mas nada contra”, eu só sei simplificar depois de complicar). E falei do swing só para dizer que não sei se três ou mais pessoas conseguem compartilhar o amor. Há quem diga que se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo, sei lá, até hoje nunca foi o meu caso.
Mas a escrita é um registro da fala, em certos casos. Mas também se pode escrever coisas que não serão faladas: existe um mundo próprio da escrita.
Eu queria chegar aqui: fumando Lark, eu me sentia a música (mais ou menos como um cara que beba cerveja para se sentir o pegador da propaganda, ou uma garota que use Seda para se sentir a mocinha do “Me olha. Me olha de novo.”, ou uma criança que compre as bonecas das RBD para se sentir uma Rebelde). Fumar Lark está para a música da propaganda mais ou menos como escrever “eu te amo” está para ouvir “eu te amo”. Nenhuma das duas experiências é pior, escrever é legal e amar também. Mas uma experiencia não traduz a outra, não substitui a outra. Fumar Lark não é o mesmo que dançar e ouvir a música, mas era o que eu fazia. Até acho que, se fumo hoje, é mais por nostalgia dos tempos do Lark (não só a música, mas tudo o que era aquele mundo de então), mesmo que eu não faça questão de que aqueles tempos voltem (foram bons, mas hoje é hoje e eu gostei de muito do que veio depois daquele tempo… não é bem isso, mas o assunto não é esse). Hoje eu tenho apenas um registro daquela música: 8mg de alcatrão, 0,8mg de nicotina e 8mg de monóxido de carbono, sem contar o Cádmio, o Mercúrio e todas as outras coisas que tem num cigarro.
Tudo isso para dizer que eu tenho medo de dizer que amo X. Por mais que eu saiba que escrever “eu te amo” não seja amar, ainda me prendo muito à relação entre falar e escrever, entre escrever e viver: me pareceria mentira escrever “eu te amo” sem nunca ter dito, e mesmo por medo de jogar o “eu te amo” na vala comum (escrever “eu te amo” não é o mesmo que amar, mas como me prendo ainda à escrita, escrever ainda está muito dependente de viver).
Eu não posso escrever o que sinto por X, porque nunca amei X. Mas também não posso dizer que não amo X, pois [leia-se: aquilo que não posso escrever]! Isso talvez signifique: não quero mentir. Mas pode significar outra coisa: toda esta divagação sobre X e o amor não tem o menor fundamento, pois não existe objeto que verifique o que escrevo (inclusiva, já me comprovaram várias vezes que nunca amei. Estamos ainda analisando as provas).
Talvez possa dizer, pelo menos em relação à amizade que temos. Mas, como vou saber se não sou uma amizade de ocasião? Amizades de ocasião podem ser muito intensas, mas são de ocasião. Sei lá se X… mas não quero desconfiar. Talvez o que me falte seja o que muita gente (na verdade, apenas uma pessoa, mas que vale por uma multidão) me disse: fale. Até Pedro Almodóvar já me disse isso, logo ele que nem me conhece. Mas como arriscar perder alguém tão… tão X, apenas para assegurar que poderei… amar? Não devo ter amado nunca mesmo.
O Lark substituía a música, claro que muito se perdia, mas o cigarro também tinha certos encantos que a música não tinha, e agora o Hollywood mentolado substitui o Lark.
Mas o que vivo – o que quer que seja que vivo – com X é, também, intenso assim como é. Talvez me falte ambição, a ambição de amar. Talvez eu me contente com pouco. Mas tenho medo de que esse pouco se perca: seja por mudança de Estado (X pode, a qualquer momento, ir morar em outro lugar), seja por mudança de estado (X pode se encantar por qualquer outra pessoa aí pela rua), seja por mudança de estado (X pode pensar que a amizade que tenho era apenas pretexto, jogo de cena para me aproximar. Como se diz para alguém: “quero tua amizade, nunca quero perdê-la; mas também quero te amar, sem perder em nada da amizade mas acrescentando algo”?). Amor fraternal, amor de amizade, tudo isso tenho por X. Mas… sei lá. Talvez faça falta o corpo. O corpo de X estou falando, porque o meu está aqui.
Mas como não se sentir uma coisa como o Quasímodo ao dizer “eu quero amar também o teu corpo?” Baixa auto-estima? Não sei se X me estima tanto quanto estimo X. O corpo é algo complicado, e não sei se X suporta meu corpo, que é o que quero oferecer – além de tudo o mais que X já tem de mim. Medo de rejeição? Mas já me rejeitaram tanto que, no que diz respeito somente à rejeição, mais uma ou menos uma não faria diferença. Somente esta que está em questão.

Mas, no fim das contas, são só palavras. Falta a música, a dança. “The Sound of Music”.