O pensamento hetero

Estes discursos da heterossexualidade oprimem-nos no sentido em que nos impedem de falar a menos que falemos nos termos deles. Tudo quanto os põe em questão é imediatamente posto de parte como elementar. A nossa recusa da interpretação totalizante da psicanálise faz com que os teóricos digam que estamos a negligenciar a dimensão simbólica. Estes discursos negam-nos toda a possibilidade de criar as nossas próprias categorias. Mas a sua acção mais feroz é a implacável tirania que exercem sobre os nossos seres físicos e mentais.

Imagine que você não é heterossexual. Isso vale para qualquer sexo – apesar da linha intransponível que divide os sexos e torna-os essencialmente estranhos um ao outro – e para qualquer coisa que não seja heterossexual. Ainda assim, você se insere dentro de um contexto heterossexual. Isso refere-se, sim, ao contexto político, cultural, religioso, legal, socieal, etc, mas diz respeito, também, ao contexto linguístico onde nos inserimos.

Você não é heterossexual. No entanto, vivemos em uma sociedade heterossexual. A expressão desta sociedade é heterossexual. A linguagem é heterossexual. O imaginário simbólico desta sociedade é heterossexual. Como você se faz entender dentro desta sociedade? Você precisa expressar sua situação, a sua realidade, em termos heterossexuais – sem ser heterossexual. Isso significa que existe um tipo de incomunicabilidade – talvez maior que a incomunicabilidade entre homens e mulheres, esses dois mundos à parte um do outro – que impede que uma pessoa não-heterossexual se expresse dentro de um contexto heterossexual.

Isso é semelhante àquela situação: dado um casal homossexual, por exemplo, uma das partes é o homem, e a outra, a mulher. Podem ser dois homens ou duas mulheres, não importa. As pessoas somente conseguem compreender uma relação afetiva em que há um homem e uma mulher – mesmo que não haja um homem ou uma mulher naquela relação. Trata-se de organizar sua compreensão segundo determinado esquema, determinada organização. Algo impede que mesmo um casal mulher-homem tenha um tipo de relação homossexual? Seria incompreensível, pois todo casal é, por definição, heterossexual.

Serve só de exemplo, pois se está falando não necessariamente deste caso (que, de qualquer maneira, apenas expõe uma visão, uma interpretação heterossexual dos relacionamentos – que não poucas vezes, é compartilhada também por casais homossexuais – e não corresponde à visão de muitas outras pessoas). Se está falando de todoum sistema simbólico heterossexual, de toda uma cultura heterossexual. O dinheiro é heterossexual. Os filmes são heterossexuais (mesmo Beijando Jéssica Stein ou Brokeback Mountain). As sandalias da Via Marte são heterossexuais.

Os pressupostos sobre os quais funciona o entendimento são heterossexuais. Aí você vai explicar, vai se expressar vai amar de maneira não heterossexual – uma sociedade heterossexual vai cimpreender? Vai admitir tal possibilidade? Vai ser como se, acada vez que você falasse “Hoje é dia 9”, a pessoa entendesse “quero um copo d’água”.

Se você perguntar a uma argentina chamada Bianca qual é seu sobrenome, ela vai dizer “Bibi”, e você vai pensar que ela se chama Bianca Bibi. Se ela lhe perguntar seu “qual es tu sobrenombre?”, você vai responder “Ferreira Pinto”, e ela vai achar estranho que seus amigos lhe chamem de Ferreira Pinto. Isso porque Sobrenombre, na Argentina, é como eles chamam o que aqui chamamos de apelido (o sobrenombre do Edson Arantes do Nascimento é Pelé, e não Nascimento), e Apellído é o que chamamos de sobrenome (o apellído da Xuxa é Meneghel). Mi apellído es Nascimento, mas meu apelido é Pelé. Mi sobrenombre es Xuxa, mas meu sobrenome é Meneghel.

A mesma relação se dá entre a compreensão heterossexual do mundo. Não adiante você dizer “sou mulher e amo uma mulher”. A mente heterossexual compreenderá que uma das duas pensa que é homem. Uma das duas não é mulher, uma das duas não enquadra-se na definição de mulher.

É mais ou menos isso que diz – ou que, pelo menos, eu entendi – do texto do link abaixo. Não entendo como nunca ouvi falar dessa mulher antes!! Como não se estuda ela em sociologia, em psicologia, em linguística, em direito, em comunicação, e, no meu caso, como a filosofia não estuda isso?? Por isso que filosofia, mesmo, parece ser a que ocorre fora da Academia (exceto a Nova Acrópole, que consegue ser algo mais infeliz do que a Academia). Schopenhauer estava certo.

Bom, sei lá se a mulher quis dizer isso mesmo que eu entendi mas de qualquer maneira ela é muito boa, ótima. E trabalhou com Simone de Beauvoir, de quem sou fã incondicional.

http://www.geocities.com/girl_ilga/textos/pensamentohetero.htm