Por outro, não podemos viver sem ele. Todas as pessoas sabem que ao som do tiro segue-se uma bala. Todas as pessoas sabem que açucar da diabetes. Todas as pessoas sabem que se pular do décimo oitavo andar, morre. Isso é sabido até mesmo por quem nunca levou um tiro, teve diabetes ou pulou do décimo oitavo. E dificilmente alguém vai arriscar-se a provar se isso é verdade ou não. Isto também são preconceitos.
Trata-se, então, de saber quais são os preconceitos opressivos, “injustos”, nocivos. Em geral, são os preconceitos que depreciam as pessoas. Nego é de pouca confiança. Lésbica é depravada, gay, além disso, é aidético e pedófilo. Alemão é nazista. Novela da Globo é boa, livro do Paulo Coelho é “edificante”.
Como se faz este processo?: você cria categorias, e características que caracterizam elementos desta categoria. A partir daí, você passa a colocar dentro desta categoria qualquer elemento que possua uma ou duas características próprias daquela categoria. Lésbica é depravada “Ai, imagine, ela lambe a buceta da outra” diz uma mulher que possivelmente não tem sua buceta labida pelo seu garanhão, apesar de isso ser tudo o que ela queria. “Ui, aquele nego é fedido”, diz uma pessoa branca que sustenta a Rexona e a Avon. Uma mulher que lamba a buceta da outra, uma pessoa cujo fedor é pressentido mais do que sentido, são pessoas fora do que se espera de pessoas “de bem”.
Mas estes são exempos até meio infantis – ainda que muito disseminados.
A questão é que categorizamos. Até aí, tudo bem. O problema é levar a sério estas categorias. Categorias são uma ficção, um modo de pensar. Se podemos ou não fugir da categorização é outro problema. O problema é naturalizar o que é cultural, convencionado, criação.
“Negro” é uma pessoa com grandes quantidades de melanina na pele. Uma pessoa bronzeada pelo sol teria direito a ser Miss Negra 2007? Pais brancos descendentes de negros que gerem uma criança negra são uma família de que cor? Um branco, descendente tanto de alemães quanto de negros, tem o direito de celebrar Zumbi dos Palmares como quem celebra alguém de sua própria raça? Faz diferença a cor da minha pele? E a cor dos meus olhos? E a cor dos meus cabelos pintados? Só porque a Daniela Cicarelli é idiota eu vou deduzir que todas as pessoas que têm seis dedos nos pés vão, algum dia, tentar me impedir de usar o You Tube?
Mas é de se imaginar que exista alguma categorização “primordial” na sociedade. Qual será?
Pois as categrias se interpolam, se misturam demais. Entre homo e heterossexuais, existem bissexuais e transexuais. Entre brancos e negros, existe uma enorme gama de cores – e mais ainda o bronzeamento, o bronzeamento artificial e o pó-de-arroz. Entre os bons e os maus, existem os desesperados e os cínicos. De certa maneira, por mais que ainda existam pessoas que creiam ferrenhamente no mundo categoricamente ordenado, não há como sustentar estas categorias. Só os EUA ainda vêem todo árabe como um terrorista em potencial – mas isso é paranóia debilóide, antes eram os comunistas, antes ainda eram os negros, há pouco tempo eram os “chicanos”… (um rápido comentário deslocado: esta paranóia é a principal arma nas mãos do Bin Laden: é mais do que óbvio que, estimulando o paranoicismo norte-americano e voltando-o contra os árabes, boa parte do mundo antipatizaria com os EUA). Com excessão do governo norte-americano, portanto, é difícil alguém levar realmente a sério as categorias. Mesmo as pessoas mais preconceituosas não conseguem mais, hoje em dia, serem livremente preconceituosas (isso não minimiza, é claro, a situação: por mais que vivamos em uma sociedade menos preconceituosa, ainda assim homossexuais são espancados, humilhados, ridicularizados ou, simplesmente, são vistos como extraterrestres, o que torna aquele “menos” quase insignificante).
Sobre qual categoria fundam-se todas as categorizações sociais? Ou, perguntando de outra maneira, qual categoria resiste, como de fosse de adamantium (nota para quem não assiste ou lê X-Man: adamantium é o que reveste o corpo de Wolwerine, e é o metal mais resistente de que se tem notícia, sendo, mesmo, indestrutível – e não se diga que “ah, x-man é ficção pura”: o enredo todo gura em torno do preconceito e da intolerância, coisas tão reais quanto o vidrinho para onde você olha agora*)? Qual categoria ainda não deixou de ser, e que pauta mesmo as transformações sociais que aconteceram ou estão em curso? A categoria “sexo” ou “gênero”: a diferença entre homem/mulher.
Não se trata de defender que liberou geral, todo mundo pelado agora, êêêê!!! Mas sim que esta ainda é a mão que mais oprime – e que só é sentida por minorias, negros, mulheres, lésbicas, pobres, etc (“pobre”, como se sabe, não é uma minoria, mas é oprimida como tal). Isso, essa diferenciação, essa categoria, esta convenção naturalizada, está na base de – isso é uma hipótese – todos os preconceitos, de toda a opressão que ainda resiste.
Pequenas provas indiretas disto: bissexuais são discriminados inclusive por homossexuais (não todos, preciso dizer isso mesmo?). Travestis são discriminados inclusive por gays (“por causa deles é que pensam que a gente quer ser mulher”). Pessoas andróginas são discriminadas por tutti quanti. Porquê? Bissexuais ficam tanto com homens quanto com mulheres – não “escolhem” um sexo de sua preferência, passam por cima disso. Travestis nascem homens e querem tornar-se mulheres – “escolhem” um sexo de sua preferência, mas passam por cima da barreira interssexual. Pessoas andróginas não querem ser do sexo oposto, apenas não apresentam-se como sendo de qualquer um dos dois – passam por cima, também, do “menino ou menina?”.
Claaaro que devem existir bissexuais que tenham alguma preferência por algum sexo. Muitos travestis consideram-se uma espécie de “terceiro sexo”. E só conheço pessoas andróginas de ouvir falar – e, também, o David Bowie numa de suas fases – portanto, sei lá qual é que é. Mas esse povo são exemplos deminorias dentro de minorias – o que quer dizer que mesmo minorias ainda dão tiros no próprio pé, alimentando o pensamento hetero.
“Pensamento hetero” não significa “agora todos devemos ser homossexuais”. Significa naturalizar a diferença entre os sexos. “Meu mundo pode ruir, todas as diferenças acabarem, todos os conceitos se transformarem, mas um homem será sempre um homem, e uma mulher, uma mulher”. Dito em termos filosóficos (filosofia metafísica, mais precisamente): “pensamento hetero” significa ontologizar a dicotomia entre os sexos. Não se trata de dizer que o fato de uma pessoa gostar de ter um relacionamento heterossexual é um horror e por isso que a coisa está ruim do jeito que está. Se trata de dizer que esta classificação sexista é nociva. Pressupor algo a partir do que uma pessoa tem no meio de suas pernas é nocivo. Gostar do que uma pessoa tem no meio de suas pernas é diferente, e uma pessoa pode gostar de qualquer coisa, e não gostar de qualquer coisa, e, ainda por cima, gostar de certas coisas em certas situações e não gostar em outras, e mais outras tantas possibilidades. Gosto é gosto e, por mais que eu ache que se discute, o fato de eu gostar disso ou daquilo não signifca que você tem que gostar também (é muito interessante discutir o gosto, independente de concordar com o gosto alheio ou não, mas eu estou figundo do assunto).
Pensamento hetero é a categoria mais estanque de que dispomos atualmente. Você pode questionar tudo, dizer que a ciência é resultado de uma moral (Nietzsche), dizer que não existem raças, que não existem verdades, que deus morreu, que o papa é pop, virar o Andy Wharrol (não se escreve assim), beijar meninas e meninos, não beijar ninguém, largar o último semestre de medicina e virar hippie, o que for. Mas que homem é homem, mulher é mulher e são duas coisas muuuuito, completamente, (o pior) intrinsecamente diferentes, não interpoláveis, que “mulheres são de marte, homens são de vênus”, que cperebros femininos funcionam diferente de cérebros masculinos, que mulheres são maternais e homens são mais ativos, isso, esssas coisas, nunca podem ser postas em questão.
Por isso, por essa recusa de colocar esta diferenciação em questão, lésbicas continuarão a serem aceitas mais como fetiches masculinos do que como uma coisa qualquer como qualquer outra coisa, gays continuarão a apanhar na rua (lésbicas só não apanham porque “em mulher não se bate nem com uma flor”, mas homens estão autorizados a mostrar para elas que o problema delas é falta de homem), cor de pele continuará sendo uma insignifcância determinante, mulheres prosseguirão sendo pessoas que tem a obrigação de cuidar da casa e homens pessoas que tem a obrigação de serem “H”omens, e por aí vai.
*duvido que alguém o faça, mas se você imprimir este texto, substitua ” o vidrinho” por “a folinha de papel”