Eu gosto das minhas dúvidas e indagações: elas só tem alguma relevância para mim (me, yo, moi).
Por exemplo: porque “minha geografia”? (isso quer dizer que ninguém vai nunca se matar, largar a faculdade, largar o emprego, matar o presidente nem nada disso com as minhas respostas – só, possivelmente, eu).
Eu poderia falar da minha história: porque eu sou assim e não assado? Porque eu gosto do que gosto e não gosto do que não gosto? Como meus pais me criaram? Qual a influência da vida conjugal deles na minha? Isso é psicologia barata, e eu gosto também de psicologia barata, mas é bom variar às vezes. “história” é história, e minha biografia interessa só a mim – aliás, eu a acho muito interessante.
Além disso, uma história tem muitos nuances: agregada à minha história, tem a história dos meus pais, das minhas irmãs, dos bichos aqui de casa, da minha casa, dos meus avós, dos meus amigos, dos meus vizinhos, da minha rua, da minha cidade, estado e país (sem contar o planeta e mais além ainda), da minha formação, muita coisa.
“Mas, claro,” você diria, “sua besta: por isso selecionamos“. Sim, sim. Mas como selecionar? Que critérios utilizar? Li um livro de Foucault, um francês-careca-gay-inteligente-filósofo-falecido (não necessariamente nesta mesma ordem). Ele falava em fazer séries de séries, e dispor estas séries segundo uma série. Eu não entendi, então isso não me ajuda muito.
Aí vem a geografia: quando você faz um mapa, você mapeia determinadas coisas. Um mapa rodoviário é um mapa das rodovias, um mapa hidrográfico aponta os rios, um mapa das pizzarias da cidade mostra (dã) as pizzarias da cidade. Mas, além do óbvio: um mapa é muito mais claramente selecionável. “Imparcialidade” é um mito, ninguém é imparcial. Até os nêutrons tem o seu lado – que não é o lado do elétron nem o do [esqueci o nome]. E qualquer história tenta ser imparcial. Eu deixo bem claro que sou parcial. E a melhor maneira de ressaltar essa parcialidade é fazer um mapa meu.
Determinados assuntos não entram aqui, outros sim, alguns mais frequentemente, outros menos. Quando me perco, vira a bagunça que está.
Eu imagino que a minha vida tem diversos caminhos concomitantes, tipo diferentes frentes de trabalho: tem a filosofia, tem minha vida em casa, minha relação com as outras pessoas (cada pessoa uma relação diferente), meus gostos, minhas opiniões, minhas experiências (quem vê pensa mesmo que é muito experiente a criatura…), essas coisas. esses caminhos todos às vezes se cruzam, se influenciam, se afastam, mas cada qual tem seu curso próprio. Minha vida em casa influencia na minha vida em relação à filosofia. Mas eu não estudo esse ou aquele livro porque hoje não tem patê para o meu pão, por exemplo. Por outro lado, às vezes leio menos porque o supermercado estava lotado e eu cansei lá.
Se eu fosse me definir, eu desistiria e iria dormir, porque não gosto de me definir – eu sempre traio as minhas definições e elas nunca são completas, de qualquer modo. Sou uma pessoa muito imprecisa. Eu sou sempre quase isso. Mas nunca é bem isso. Mas uma coisa parecida com uma dfinição é: eu me componho de diversos caminhos (não só disso, claro). “Diversos caminhos” não quer dizer que eu vou para diferentes lados ao mesmo tempo, ou que me divido em várias posições. Não quer dizer algo como “diversas tentativas” ou “não me encontrei”.
Eu quero dizer que, por exemplo, no amor eu só me dou mal, mas nos estudos, não. O que não me impede de mudar radicalmente o curso dos meus estudos e me manter nesse caminho desastroso de erros no amor (ai que romântico – auto-zoação). Eu poderia dizer que atuo em diversos campos: mas quando estou na faculdade, não estou em casa. Quando saio de noite, não estou nem em casa nem na faculdade. E não quero dizer que estes lugares estejam em mim. Uso muito, mas prefiro evitar metáforas – ainda mais uma metáfora piegas dessas, como “meu lar vive em mim” ou “eu não estou: os lugares é que estão em mim”: tosco e sem sentido.
Por isso me constituo (não exclusivamente) de caminhos. Esses caminhos formam traçados: fazem curvas, interrompem-se, pegam atalhos, voltam, dão guinadas inesperadas, formam círculos. E o desenho que se forma sou eu – que medo de dizer “sou eu”, mas vá lá… Pelo menos, é parte do que sou eu, prefiro dizer assim.
Eu, propriamente, é bom deixar claro especialmente paraa mim que às vezes tenho surtos engraçados de megalomania, não sou um caminho. Mas me constituo deles. Eu não sou a filosofia, nem constituo a filosofia, mas a filosofia tem um traçado em mim. Não sou o fracasso nem o sucesso, mas ambos têm caminhos em mim.
Os meus amores, por exemplo, deixaram um traçado em mim, e em algum ponto do meu mapa está lá, uma linha tocando a linha de outra pessoa. Ás vezes eu procuro algo no mapa. Mas não na minha história: um olhar inesperado e marcante de milésimos de segundos que eu troquei com alguém na rua não é uma história – mas o traçado do meu olhar tocou o traçado do olhar de alguém, e esse desenho está lá, no meu mapa. Imagine se eu fosse considerar a relação da minha história com os romances que li!
“O livro ‘As Aventuras de Tom Savyer’ marcou muito minha vida. Li-o e vivi aquelas histórias em minha imaginação. Quem lê, viaja”. Além de ser uma coisa chata, tooooodas as professoras falam isso para seus alunos e deve ser por isso que às vezes as crianças se revoltam (às vezes as crianças merecem minha solidariedade: imagine passar quatro horas inteira com uma pessoa dizendo “nhénhénhé”, “agora, vamos pintar a Turma da Mônica”… Ô tédio!!…). As coisas que eu li me marcaram de maneiras diversas: esse livro que disse ali em cima, por exemplo, não me influenciou em construir barcos, em desvendar mistérios, em encontrar tesouros, nada. Mas estimulou meu gosto para ler romances. Eu não teria o que falar dele se fizesse a “História da Minha Formação Literária”: o livro (que esses dias fui reler) é chato, mal-escrito, muito comunzinho. Mas foi importante para mim. Por causa da influência que teve em certos traçados da minha vida. De maneira bastante indireta (mas essencial), por exemplo, ter lido aquele livro fez com que eu não me tornasse a coisa tosca que meus parentes projetavam para mim. E isso não pelo conteúdo, ou pelo estilo, mas porque eu gostei quando li e li mais dizentos outros para ver se achava um parecido, na época. essa não éa versão completa, mas serve de exemplo.
Por isso “minha geografia”: são os caminhos – alguns dos caminhos – que me constituem.