Total falta de assunto há dois miutos atrás. Mas a internet, essa senhora maneira, me ajudou.
Há muito tempo atrás, eu devia ter uns 14 ou dezoito anos (a ordem cronológica da minha vida é constantemente violentada pela minha memória), quando eu estava sem assunto, eu entrava em um site “pró-vida” que apregoava coisas do tipo “a homossexualidade é um crime pior do que o assassinato” ou, em uma cartilha para jovens, recomendava que o casal de namorados deveria manter-se sempre à vista de outras pessoas (para evitar tentações), não devia se beijar, nem pegar muito nas mãos (de preferência, nem se tocarem), e fazer uma oração e um exame de consciência antes e depois do namorico. Respeito a opinião alheia, mas me dou o direito de ridicularizá-la – se eles escrevessem que desejam que o mundo seja assim, ok, mas recomendar isso, de maneira séria, é uma piada, pelamordedeus; se bem que deve existir gente que leve esse tipo de piada a sério… – me dou o direito de ridicularizá-la se achá-la ridícula. E nem adianta me ridicularizar de volta: já me ridicularizaram tanto na vida que possuo uma tolerância bastante alta à ridicularização – meus detratores criaram um monstro praticamente imune à ridicularização. He; he; he; bobocas.
Voltando aos meus hábitos de outros tempos, eu fazia isso para me irritar – eu só escrevia movido à irritação (a irritação era a minha benzedrina, seja lá o que for isso, mas alguns escritores só escreviam movidos a isso). Me irritava profunda e desesperadamente lendo aquelas coisas – e outras do tipo “o feminismo retira da mulher a sua maior glória e realização: cuidar da casa, do marido e dos filhos”… Mas eu me tornei uma pessoa mais calma, acho. Às vezes esse tipo de coisa me irrita, em outras vezes, eu somente me surpreendo com a inocência das pessoas que dizem esses disparates. Acho que consigo entender o que jesus sentia quando disse “perdoa-os, eles não sabem o que fazem”. É como você ver um cachorrinho correndo atrás do próprio rabo. O cachorrinho fazendo isso chega a ser comovente de tão burrinho que é, e no caso de quem faz aquele tipo de afirmações reproduzidas ali em cima, seria também comovente e adorável, se não fosse tão nocivo.
Como eu estava sem assunto, resolvi lançar mão do mesmo recurso de outrora (viu só como eu sei escrever bonito? Consegui juntar, em uma mesma frase “lançar mão do mesmo recurso” e “outrora”!!): ir no google e digitar alguma coisa como “feminismo”, “aborto” ou “homossexualidade”. No caminho até algum site muito idiota, se acha muita coisa interessante (como http://colectivofeminista.blogspot.com/, por exemplo), mas muita mesmo. Felizmente, ao que parece, tem mais coisas interessantes do que coisas retardadas. Mas sempre há alguma idiotice nova no ar. Mas dessa vez não fiz isso para me irritar. Foi só para achar algum assunto, e até me diverti com as “Falácias dos slogans pró-aborto” (humor negro, claro), no site do Portal da Família. Aí eu resolvi escrever sobre o texto deles. Não vou indicar o site, se você queiser, me peça por e-mail, mas não vou fazer propaganda do endereço do site aqui.
O que eles fizeram? Pegaram 20 argumentos utilizados em defesa do aborto e “explicaram” porque eles são falácias (grupos “pró-vida” adoram o termo “falácia”, vá entender…), mentiras, enganos, engodos.
Eis o texto da Falácia nº 9 – Impor a Moralidade:
Outro slogan vulgar postula o seguinte: “Proibir o aborto é legislar moralidade. Pessoalmente sou contra o aborto, mas não posso impor as minhas convicções morais aos outros”. E o slogan companheiro deste é assim: “Nosso país é um Estado laico, há separação entre a Igreja e o Estado. Logo não se pode legislar moralidade, ou fazer leis de base religiosa”.
Sobre isto diga-se o seguinte:
1. “Proibir a escravatura é legislar moralidade. Pessoalmente sou contra a escravatura, mas não posso impor as minhas convicções morais aos outros”. “A Igreja proíbe a escravatura. Como nosso paísé um estado laico não se podem fazer leis de base religiosa. O Estado não pode proibir a escravatura sob pena de estar a violar a separação de poderes”.
2. “Proibir o infanticídio é legislar moralidade. Pessoalmente sou contra o infanticídio, mas não posso impor as minhas convicções morais aos outros”. “A Igreja proíbe o infanticídio. Como Portugal é um estado laico não se podem fazer leis de base religiosa. O Estado não pode proibir a infanticídio sob pena de estar a violar a separação de poderes”.
3. “Proibir a violação é legislar moralidade. Pessoalmente sou contra a violação, mas não posso impor as minhas convicções morais aos outros”. “A Igreja proíbe a violação. Como nosso país é um estado laico não se podem fazer leis de base religiosa. O Estado não pode proibir a violação sob pena de estar a ferir a separação de poderes”.
4. “Legalizar o aborto é impor a moralidade de alguns aos outros. Pessoalmente sou a favor da legalização, mas não posso impor a minha moralidade aos outros.” “Como nosso país é um estado laico, só podem existir leis de base ateia”.
5. Como se vê estes slogans valem nada. Todos eles ignoram que o fundamental de uma lei é saber se é justa ou não. A proibição de matar é uma lei justa ou uma imposição moral? A proibição de roubar é uma lei justa ou uma ofensa à separação de poderes?
6. Se não se pode impor a moralidade, como poderão ser as leis? Imorais?
7. Por trás deste slogan está uma cascata de preconceitos. A saber, a)moralidade é religião; b)todas as religiões são iguais; logo, c) todas as morais são iguais. Mas se tudo isto é verdade, que base existe para punir o seguidor de um culto satânico que faz sacrifícios humanos?
8. Não se pode dizer que, por exemplo, se os africanos são contra o racismo, então toda a pessoa que luta contra o racismo é africana. Do mesmo modo, não se pode dizer que se as religiões têm sistemas morais, toda a moral é religião.
9. Basta que uma religião proíba um determinado ato, para que os Estados fiquem proibidos de o proibir, sob pena de estarem a violar a separação entre Igreja e Estado? Será preciso que a Igreja aprove o homicídio para que o Estado o possa proibir? Ao proibir o homicídio, Igreja e Estado fazem a sua obrigação. Ao permitir o aborto, o Estado foge à sua obrigação.
10. Além do mais, a proibição do aborto é uma questão moral muito sui generis. Concordam na proibição do aborto pessoas que devem estar de acordo em muitas poucas questões mais. Seguem-se algumas pessoas de primeiro plano, dentro dos grupos a que pertencem, e que defendem a proibição do aborto:
Metodistas: Paul Ramsey, Stanley Haverwas, Albert Outler, Donald Wildmon;
Luteranos: Richard Neuhaus, John Strietelmeir;
Judeus: Rabbi Chaim Lipschitz, David Novak, Hadley Arkes, David Bleich, Baruch Brody, Nathanson (agora convertido ao catolicismo).
Ateus: Nat Hentoff, Christopher Hutchins.
11. Na questão do aborto não está em causa saber qual a fonte, a origem ou a legitimidade para fazer leis. O Estado já faz leis. O que interessa saber é porque se julga o Estado com legitimidade para proibir o infanticídio e não se julga com legitimidade para proibir o aborto. Por que não é a proibição do infanticídio uma imposição da moralidade enquanto o aborto o é? Será pelo fato das vítimas serem essencialmente diferentes? Mas onde está a diferença?
12. Ainda que tudo isto fosse falso, o resultado é que o slogan referido permite defender o aborto até aos nove meses posto que não há nada nele que impeça a legalização do aborto em qualquer ponto da gravidez. Logo, ou o slogan está errado ou aceitamos o aborto até aos nove meses.
Bom, o “slogan”mencionado parte da idéia de que não se pode estender a proibição do aborto a todas as pessoas com base na alegação de que apenas algumas acham o aborto imoral. Ou seja, não é porque A não deseja abortar que B precisa deixar de abortar. Mas aí eles mencionam outro “slogan”: o de que não se pode proibir o aborto somente porque a igreja proíbe, pois o estado é laico.
O que eu quero dizer disso é tão simples que chega a ser difícil.
O “slogan” que eles querem denunciar como falácia é a idéia de que se eu não gosto que façam comigo, nada impede que você faça com você. Mas aí o texto anuncia um “slogan companheiro deste”, que é a idéia de que o estado não pode proibir o aborto simplesmente porque a igreja proíbe.
É uma jogada muito boa do texto igualar as duas idéias. Mas o “slogan companheiro” é uma idéia que pode, realmente virar uma falácia, mas somente quando uma pessoa quer que o Estado sempre contradiga a igreja, como quem dissesse “se a igreja diz que o domingo vem depois de sábado, o estado tem que dizer que o sábado vem depois do domingo”, ou seja, fizesse birra.
O texto faz o quê? Aponta o absurdo que seria defender que o estado deve sempre contrariar a igreja. Mas fala isso como se falasse do “slogan” que diz se eu não gosto que façam comigo, nada impede que você faça com você.
O texto quer fazer parecer que quem defende que eu não posso impor minha moral aos outros está defendendo que o estado deve sempre contrarias a igreja.
Mas essa jogada do texto somente é possível igualando o “slogan” ao “slogan companheiro”, e, ainda por cima, igualando o “slogan companheiro” a uma birra.
Vou tentar me explicar mais claramente. Existe a idéia de que eu não posso impor minha moral aos outros. Aí o texto diz que defender essa idéia é o mesmo que defender outra idéia, a de que o estado não pode impor preceitos cristãos às pessoas. E diz que quem defende a segunda idéia, defende que o estado precisa sempre contrariar a igreja.
Mas defender a idéia de que eu não posso impor minha moral aos outros é uma coisa. Outra coisa é entrar no caso da relação entre a igreja e o estado. Quando se defende a separação entre igreja e estado, não se está atacando a moral da igreja, nem dizendo que ela é feia: simplesmente se está dizendo que as decisões do estado não podem ser determinadas pela igreja. Até mesmo seria absurdo uma pessoa defender o estado laico e dizer que o estado é laico quando contraria a igreja – nesse caso, a igreja ainda estaria determinando as decisões do estado. Estado laico significa que a opinião da igreja não determina a opinião do estado.
Aí o textinho vem com essa: “Por que não é a proibição do infanticídio uma imposição da moralidade enquanto o aborto o é? Será pelo fato das vítimas serem essencialmente diferentes? Mas onde está a diferença?” Esse trechinho supõe que matar uma criança seja o mesmo que fazer um aborto – mas essa é uma idéia defendida pela igreja, é uma opinião da igreja – até onde eu saiba, a sra. Ciência não definiu ainda se um feto é tão gente quanto uma criança, aliás, a sra. Ciência ainda não conseguiu explicar o que é vida, nem definir o que é “ser humano“, portanto, ainda não é possível dizer se um feto tem o mesmo estatuto, o mesmo status de uma criança. Ou seja, o que o texto faz é dizer que a posição da igreja é pressupor uma opinião da igreja como se fosse uma verdade indiscutível, e, com base nessa pressuposição, afirmar que quem se opõe ao infaticídio deve posicionar-se também contra o aborto.
Enfim, o que o texto do Portal da Família faz é distorcer uma idéia para dizer que essa idéia é um engodo. Ou, falando nos termos deles, o que eles fazem é criar uma falácia para chamar uma idéia não-falaciosa de falácia.