O Segundo Sexo

Se for possível dar crédito a Simone de Beauvoir, a opressão feminina é consequência, basicamente, da repetição incessante de uma condição estabelecida na aurora disso que hoje se reconhece como civilização.

Em um tempo quando era necessária, principalmente, a força física para defender-se e defender ao bando (ou clã, gens, etc), e uma certa regularidade da disponibilidade total do seu corpo, as mulheres acabaram por ficarem relegadas à proteção masculina: uma mulher grávida não dispõe da mesma força de um homem para lutar ou caçar.

Até este ponto ainda não se oprime as mulheres. Mais tarde, com a invenção de ferramentas para a caça e também para a agricultura, novamente as condições físicas das mulheres colocam-nas sob a proteção masculina. Mas, então, eis que os homens começam a querer expandir os campos cultiváveis, caçarem mais: isso demanda mais pessoas trabalhando. Em guerras, os vencidos tornam-se escravos, pessoas que são propriedades particulares de outras, e são utilizados para derrubar florestas que cederão espaço a campos cultiváveis. Da posse de uma pessoa como propriedade privada à posse da terra como propriedade privada foi um pulo.
Esses homens reconheceram-se semelhantes entre si: reconheceram em si um grupo caracterizado pela capacidade de expandir, principalmente, suas próprias capacidades. Este grupo, ao mesmo tempo em que afirmou-se como soberano, não reconheceu nas mulheres, presas aos encargos que a natureza lhes punha, semelhantes: então escravizou-as.

Elas, porém, não constituíram, assim, um grupo à parte: elas mesmas reconheciam o desejo de expandir-se, comum a toda espécie humana mas realizado então somente nos homens, e, de fato, aceitaram esta primazia.

Não se trata de afirmar que foram as mulheres que se colocaram na condição de escravas: elas foram escravizadas e disso deriva a abjeção ao machismo. Se trata de afirmar que nem mulheres nem homens deram-se conta do seguinte fato, dito nas palavras de V. Solanas, no S.C.U.M. Manifesto: “Nada, humanamente, justifica el dinero ni el trabajo. Todos los trabajos no creativos (practicamente todos) pudieron haberse automatizado hace tiempo”. As ferramentas desenvolveram-se em função das necessidades de caça masculinas, e não das necessidades femininas. Nem eles olharam pasa elas e disseram “bom, agora vamos ver o que vocês precisam”, e nem elas disseram “bom, agora vamos ver do que nós precisamos”.

Tais condições permitiram, em tempos remotos, que os homens relegassem as mulheres à condição de “pessoas de segunda categoria” (como Eva, criada por deus como Adão, mas para este e a partir do corpo deste), e permitiram que as mulheres convencessem-se disto (pois não basta que eu lhe diga “você não vale nada”, você precisa concordar comigo para que eu possa valer mais do que você).

Se eu entendi bem o que li em Simone de Beauvoir, a questão é esta.

Pessoalmente, quer dizer, não estamos mais falando de Simone de Beauvoir, acho que reduzir as pessoas às suas condições biológicas é, no mínimo, medíocre. O corpo vivido é mais imperativo do que o corpo físico descrito pelos cientistas (idéia retirada de Simone de Beauvoir, mas faço minha a idéia dela). E, eu acho, ainda é este o vetor da opressão sobre as mulheres na sociedade: o confinamento das mulheres à espécie, à natureza, a essas coisas.