Justiça social

A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das exigências de justiça social e os sindicatos são os expoentes desta luta

O desenvolvimento do conceito de justiça social a partir da tradição aristotélico-tomista recebe impulso nas Encíclicas Sociais. O conceito foi introduzido por Pio XI na Quadragesimo Anno (1931). O termo é citado sete vezes e sempre acompanhado dos adjetivos comutativa, legal/geral. Trata-se de um conceito que traz exigências precisas, tendo como critério a dignidade humana, tal como definiu Taparelli.

A economia é seu campo de aplicação mais imediato. Para Pio XI, existe uma lei de justiça social que deveria reger qualquer modelo econômico:

 É necessário que as riquezas, em contínuo incremento com o progresso da economia social, sejam repartidas pelos indivíduos ou pelas classes particulares de tal maneira, que se salve sempre a utilidade comum, de que falava Leão XIII, ou, por outras palavras, que em nada se prejudique o bem geral de toda a sociedade. Esta lei de justiça social proíbe que uma classe seja pela outra excluída da participação dos lucros. (Q A 57)

Aplica-se à esfera econômica com a mesma universalidade da justiça legal. Portanto, “cada um deve, pois, ter a sua parte nos bens materiais; e deve procurar-se que a sua repartição seja pautada pelas normas do bem comum e da justiça social” (Q A 58). Também em Santo Tomás de Aquino a justiça legal ordena o homem imediatamente ao bem comum.

A justiça social considera o ser humano na sua condição de pessoa humana, seus direitos e deveres como membro da sociedade. Assim como todos têm obrigações, todos têm benefícios, uma vez que o bem comum realiza-se somente “quando todos e cada um tiverem todos os bens que as riquezas naturais, a arte técnica, e a boa administração econômica podem proporcionar.” (Q A 75). Na ordem econômica, a fórmula da justiça social seria: todos os bens necessários para todos.

Ainda na esfera da economia, o mundo do trabalho é o campo principal de aplicação da lei da justiça social. O salário é um dos seus instrumentos principais. Para valorizar com justiça o trabalho, deve-se considerar sua dimensão pessoal e social (QA 69). O bem comum exige que se promovam postos de trabalho como condição de segurança e bem estar. O desemprego é um reflexo de uma economia injusta. A justiça social deve regular e determinar o salário do operário e de sua família, dispensando a exploração do trabalho infantil e da mulher (Q A 71).

A justiça social não se aplica somente ao campo econômico. Também “as instituições públicas devem adaptar o conjunto da sociedade às exigências do bem comum, isto é, às regras da justiça social” (Q A 110). Os seres humanos, considerados como pessoas, são iguais e, portanto, toda desigualdade em aspectos constitutivos da pessoa, como é o caso das suas necessidades materiais básicas, deve ser eliminada. Não basta apelar à moralidade nas relações entre empresários e trabalhadores, pois o sistema de produção se desenvolve no interior de uma estrutura social. A justiça social inspira a reforma das instituições. O Estado tem um papel insubstituível na aplicação desta lei (Q A 79), sempre em colaboração entre Estado, empresa e sociedade: “É preciso que esta justiça penetre completamente as instituições dos povos e toda a vida da sociedade. Em defender e reivindicar eficazmente esta ordem jurídica e social deve insistir a autoridade pública” (Q A 88).

O Concílio Vaticano, na Gaudium et spes, confere duas fundamentações teológicas decisivas. A primeira é a dignidade da pessoa humana criada à imagem e semelhança de Deus:

 A igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que, dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos. Mas deve superar-se e eliminar-se, como contrária à vontade de Deus, qualquer forma social ou cultural de discriminação, quanto aos direitos fundamentais da pessoa, por razão do sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião (…) Com efeito, as excessivas desigualdades econômicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam o escândalo e são obstáculo à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e, finalmente, à paz social e internacional (GS 29).

A segunda fundamentação encontra-se na referência “à criação de algum organismo da Igreja incumbido de estimular a comunidade católica na promoção do progresso das regiões necessitadas e da justiça social entre as nações” (GS 90). A justiça social como exigência da dignidade humana tem alcance global e encontra sua fundamentação teológica no principio do destino universal dos bens: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos, segundo a justiça, secundada pela caridade” (GS 69). Paulo VI, seguindo esta orientação do Concílio, cria a Comissão de Justiça e Paz (Motu próprio Catholicam Christi Ecclesiam, 6 janeiro1967).

João Paulo II mantém a justiça social como um eixo da doutrina social da Igreja. Para ele, a “questão social” é identificada como questão de justiça social em cuja origem se encontram as estruturas de pecado e os mecanismos perversos (Sollicitudo rei socialis). Ao situar o trabalho humano como chave da questão social, o compromisso com a justiça se concretiza, em primeiro lugar na luta pelos direitos trabalhistas (Laborem exercens). A prioridade do trabalho sobre o capital é uma das exigências de justiça social e os sindicatos são os expoentes desta luta (LE 8). Bento XVI, em Caritas in veritate, recorda que a doutrina social nunca deixou de pôr em evidência a importância que têm a justiça distributiva e a justiça social para a própria economia de mercado, não só porque integrada nas malhas de um contexto social e político mais vasto, mas também pela teia das relações em que se realiza (CiV 35).

Caberá ao papa Francisco ampliar o conceito de justiça social (TORNIELLI e GALEAZZI, 2016; FRANCISCO, 2016). Na Evangelii Gaudium, o pontífice recorda que “ninguém deveria dizer que se mantém longe dos pobres, pois ninguém pode sentir-se exonerado da preocupação pelos pobres e pela justiça social” (EG 201). E destaca que a justiça social deve estar na pauta do diálogo entre as religiões: o diálogo inter-religioso, fundado na atitude de abertura na verdade e no amor, deve procurar a paz e a justiça social, é um compromisso ético que cria novas condições sociais (cf. EG 250).

Enciclopedia digital Theologica Latinoamericana. Justiça Social, Doutrina Social da Igreja.

Imagem: Ehimetalor Akhere Unuabona on Unsplash