As culpas manipuladas

Hoje é o dia em que Cristo “carregou os nossos pecados em seu corpo sobre o madeiro” (1Pd 2,24) e, assim, retirou nossos direitos de lidar com nossas culpas, que pensávamos que tínhamos. Cristo se apresentou voluntariamente para morrer, e em qualquer caso sua morte resultaria no perdão dos nossos pecados, primeiro porque, humano como nós, Cristo teria morrido de qualquer jeito, e a brutalidade de sua morte foi uma obra humana, e não divina; além disto, não foi a brutalidade sofrida por Cristo que colocou sobre ele as nossas culpas, mas sim o desígnio de Deus, ou seja, Cristo assumiu nossas culpas porque Deus quis assim.

A mulher pecadora que foi salva do apedrejamento por Cristo mostra bem que ele já tinha assumido a responsabilidade pelas nossas culpas: não foi o argumento engenhoso de Cristo que a livrou, assim como não foi a brutalidade da Paixão que nos redimiu – se fosse assim, nossa salvação teria sido obra das violências que Cristo sofreu, e não da bondade de Deus. Libertar-se das culpas não significa que nada mais é pecado (tanto é que Cristo pediu à quase-apedrejada que não pecasse mais), mas significa que elas pertencem a Cristo, contradizendo assim até Homer Simpson: as nossas culpas não são mais nossas para que possamos botá-las em quem quisermos.

A Paixão de Cristo retirou de nós, inclusive, o direito de alguém culpar-se: se a mulher pecadora quisesse apedrejar-se a si própria, mesmo ela estava proibida de atirar a primeira pedra, ainda que fosse sobre si mesma.

A doutrina que a Igreja elaborou baseada na Bíblia e na Tradição já lida com isto tudo no sacramento da Penitência, e por sua fidelidade a Cristo, também exclui qualquer apedrejamento, inclusive simbólico, de qualquer pecador. Aí é necessário diferenciar o perdão de Cristo na cruz com o perdão da Igreja: Cristo nos perdoa do Pecado Original, e a Igreja vai lidando com os pecados pessoais, mas nada disto dá a alguém uma autorização de “portar pedras”, ainda mais quando se trata de lidar com as culpas, sejam elas as próprias, sejam as dos outros.

Acho que isso deveria incluir também as sessões de “expiação emocional” onde os condutores destas sessões estimulam os sentimentos de culpa para depois induzir o sentimento de ser perdoado. Afinal de contas, não atirar a primeira pedra inclui também não atirá-las com boas intenções, já que a condição que Cristo deu para poder atirá-las foi não ter pecado, mas não disse “quem tiver boas intenções que atire a primeira pedra”; a boa intenção é uma coisa diferente de não ter pecado, e como somos todos pecadores, nem a boa intenção libera qualquer apedrejamento, inclusive os apedrejamentos simbólicos.

Mas com certeza isto inclui também os manipuladores da culpa alheia, que atiram suas pedras para administrar o alívio de qualquer culpa: talvez acertem em cheio a culpa que apontam nos outros, mas não é porque tem razão que podiam ter apontado, e por isto ninguém deveria se sentir obrigado a nada quando os outros apontam as culpas de alguém. Ninguém se torna santo e imaculado por sofrer um apedrejamento injusto, mas qualquer pecador pode rejeitar qualquer apedrejamento amparado em Cristo, que eliminou qualquer possibilidade de algum apedrejamento ser justo – nem se parece que alguém “pede para apanhar”, ou mesmo que alguém peça com todas as letras, nada disto autoriza fazer o outro sofrer.

Sentir culpa, ao contrário do que geralmente parece, é bom e é saudável, mas qualquer ação alheia sobre esse sentimento não, pelo menos desde que Cristo, sem ter pecado, desautorizou qualquer apedrejamento antes de ter sido crucificado, e “se adonou” das nossas culpas na Sexta-feira Santa que se comemora hoje.

Imagem: Sparks Reliance on Unsplash