O IHU publicou uma reportagem sobre a audiência do Papa Francisco com uma comunidade de católicos LGBT onde ele disse (já no título da reportagem): “A Igreja ama os vossos filhos do jeito que eles são, porque são filhos de Deus“. Nos comentários da publicação do facebook, não há, felizmente, manifestações particularmente homofóbicas (há um “Esse aí [provavelmente o papa] joga pra torcida. Só não vê quem não quer…” que não chega a ser necessariamente homofóbico, mas levemente “franciscofóbico”, o que é mais ou menos o assunto deste post).
Na verdade o motivo deste post é outro comentário, que diz “Papa repete o Catecismo da Igreja Católica redigido por Ratzinger e promulgado por João Paulo II.” Ainda que diga uma coisa óbvia, pode muito bem ser um comentário de apoio a um papa que não só remete à fidelidade à doutrina, como reconhece que o papa Francisco continua fazendo o mesmo trabalho e seguindo na mesma linha dos dois papas anteriores, como todos os papas, por sinal.
Mas eu me acostumei a compreender o jeito que as pessoas se referem a Bento XVI como uma indicação de apoio ou crítica (com grandes riscos de estar errando na avaliação, é claro): apoiadores (quase sempre conservadores e saudosos da Igreja das catacumbas) se referem a ele pelo nome papal, críticos, por Ratzinger, um nome associado (na minha imaginação fértil) à perseguição à teologia da libertação, a Leonardo Boff, à Congregação para a Doutrina da fé enquanto sucessora do Santo Ofício, etc. Então eu interpretei este comentário como uma crítica a Bento XVI e, por extensão, a João Paulo II, ao papa Francisco e também ao catecismo.
Já li em algum lugar (e acho que foi em outro artigo do IHU) que o atual catecismo da Igreja está impregnado da mentalidade retrógrada e conservadora de Bento XVI, mentalidade que contava com a simpatia e o apoio de João Paulo II, e o exemplo era a condenação à masturbação, no parágrafo 2352 do catecismo, como um pecado grave.
Eu não sei sobre a mentalidade retrógrada de Bento XVI e a simpatia de JPII, mas arrisco dizer que o primeiro é contraditório e complexo como todo mundo o é, liberando missas em latim para delírio dos conservadores, e renunciando para surpresa de todos, numa atitude nada conservadora, por exemplo. E João Paulo II é um personagem ainda mais complexo. Acho estes posicionamentos pró-um-papa ou anti-outro-papa um tanto quanto rasos superficiais limitados aborrecedores, porque isto vira um jogo de Super Trunfo que funciona bem com aviões ou carros, e mais ainda na sua melhor evolução, que foi Pokémon, mas não com figuras como papas ou padres (porque há também o Super Trunfo dos padres, que faz uma disputa entre “cartas” como Júlio Lancelotti e Fábio de Melo, por exemplo). Só que eu não queria escrever sobre papas e padres, e sim sobre o meu Super Trunfo particular, o arriscado Super Trunfo dos pecados (pois sempre há o risco de errar a avaliação, mas como eu não vou ser lembrado no futuro pelas minhas avaliações corretas sobre coisa nenhuma, é um risco que eu já assimilei).
Masturbação e homossexualidade são pecados sim, mas não há nada na doutrina da Igreja que sirva para justificar a homofobia ou acusar a Igreja de um preciosismo como combater a masturbação, a não ser na medida em que qualquer pecado, seja ele um homicídio ou um palavrão, deve ser combatido. Só que ao mesmo tempo em que nenhum pecado é defensável, há pecados piores (e outros ainda muito piores) e pecados menos relevantes. Em algum lugar do catecismo, e eu não vou ir lá procurar agora o parágrafo, há esta distinção entre graus de gravidade dos pecados e, também, entre circunstâncias agravantes e atenuantes de um mesmo pecado, com a ressalva de que não se deve negligenciar os pecados mais irrelevantes por um motivo que pode ser resumido no ditado “de grão em grão, a galinha enche o papo”.
Estes dois pecados servem como exemplo de como é possível distorces a doutrina em favor de um preconceito ou de outro, pois não há nada no catecismo que condene ao inferno nem homossexuais, nem quem se masturba.
No já mencionado parágrafo 2352, a masturbação é uma grave desordem que não tem como ser uma coisa positiva; no parágrafo 2357 os atos homossexualidade são qualificados como “intrínsecamente desordenados”. Como Deus se chama (citando não sei qual vídeo do Porta dos Fundos) “Deus e não bagunça”, qualquer desordem é algo a ser evitado. Mas nem a inclusão da masturbação na lista de pecados justifica uma campanha contra uma desordem (no máximo, justifica organizar o que está bagunçado, e o perigo que há na masturbação consiste justamente em deixar tudo sem resolver), nem muito menos a desordem dos atos homossexuais justifica as cruzadas anti-LGBT que se promove “em nome” da doutrina e da virtude.
A pornografia, por exemplo, “é um grave atentando contra a dignidade das pessoas” (no parágrafo 2354), e a fornicação, “gravemente contrária à dignidade das pessoas” (no parágrafo 2353), ou seja, contrariedades graves à dignidade são piores do que desordens, pelo menos dentro dos meus achismos, que, aliás, são o fundamento deste texto. Por isto fica difícil explicar que haja tanta atenção para uma falácia como a “cura gay” e não exista uma mobilização tão grande e espalhafatosa contra algo muito pior (um “grave atentado”) como a pornografia, a não ser a instrumentalização da doutrina em nome de um preconceito, o que dá apenas um verniz religioso a uma atitude criminosa e contrária ao cristianismo.
No fim das contas, a Igreja e a sua doutrina acabam servindo para fins completamente alheios aos de Cristo, que afinal é a origem dela, e os cruzados conservadores não percebem o quanto são aliados de quaisquer detratores da Igreja (que eles sonham estar defendendo contra as trevas, o que é um trabalho de Cristo e não de qualquer outra pessoa), pois atribuindo-se a condição de paladinos da sã doutrina,e da moral, deturpam estas duas coisas e, embora justifiquem as críticas contra a Igreja, aumentam e alimentam estas críticas mais ou menos como o combustível alimenta um incêndio.