«”A época actual, a par de muitas luzes, apresenta também muitas sombras.” (TMA 36) Entre estas, pode-se assinalar em primeiro plano o fenómeno da negação de Deus nas suas múltiplas formas. O que fere particularmente é ser esta negação, em especial nos seus aspectos mais teóricos, um processo surgido no mundo ocidental. Relacionado com o eclipse de Deus encontra-se, em seguida, uma série de fenómenos negativos, como a indiferença religiosa, a difusa ausência do sentido transcendente da vida humana, um clima de secularismo e relativismo ético, a negação do direito à vida da criança não nascida, que chega a ser sancionado nas legislações em favor do aborto, e uma grande indiferença perante o grito dos pobres em vastos sectores da família humana.
A inquietante questão que se coloca é em que medida os crentes serão eles mesmos responsáveis por estas formas de ateísmo, teórico e prático. A Gaudium et spes responde com palavras cuidadosamente escolhidas: “Os próprios crentes, muitas vezes, têm responsabilidade neste ponto. Com efeito, o ateísmo considerado no seu conjunto não é um fenómeno originário, antes resulta de várias causas, entre as quais se conta também a reacção crítica contra as religiões e, nalguns países, principalmente contra a religião cristã. Pelo que os crentes podem ter tido parte não pequena na génese deste ateísmo.” (19)
A partir do momento em que o rosto autêntico de Deus foi revelado em Jesus Cristo, aos cristãos é oferecida a graça incomensurável de conhecer este Rosto: mas têm, igualmente, a responsabilidade de viverem de modo a manifestar aos outros o verdadeiro Rosto do Deus vivo. São chamados a difundir no mundo a verdade que “Deus é amor (ágape)” (1Jo 4,8.16). Porque Deus é amor, Ele é Trindade de Pessoas, cuja vida consiste na recíproca comunicação infinita no amor. Deste modo se conseguirá que a vida melhore, pois os cristãos difundem que a verdade do Deus amor é o amor recíproco: “Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.” (Jo 13,35) E isto até ao ponto de se poder dizer que muitas vezes os cristãos “pela negligência na educação da sua fé, ou por exposições falaciosas da doutrina, ou ainda pelas deficiências da sua vida religiosa, moral e social, antes esconderam do que revelaram o autêntico rosto de Deus e da religião” (GS 19).
Sublinhe-se, por fim, que mencionar estas culpas dos cristãos do passado não é apenas confessá-las a Cristo Salvador, mas também louvar o Senhor da história pelo Seu amor misericordioso. Os cristãos, de facto, não crêem apenas na existência do pecado, mas também e sobretudo no “perdão dos pecados”. Além disso, mencionar estas culpas quer dizer também afirmar a nossa solidariedade com aqueles que no bem e no mal nos precederam na via da verdade, oferecer no presente um forte motivo de conversão às exigências do Evangelho, e proporcionar o necessário prelúdio ao pedido de perdão a Deus que abre caminho à recíproca reconciliação.»
Memória e reconciliação: a Igreja e as culpas do passado, 5.5
Imagem: Ýlona María Rybka on Unsplash