«O novo Pentecostes e o aggiornamento da Igreja desejados por João XXIII começaram a se fazer sentir desde a primeira sessão do Vaticano II, quando uma ampla maioria de padres conciliares se opôs aos documentos preliminares preparados sob a direção do Cardeal Alfredo Ottaviani, prefeito daquela que se chama hoje Congregação para a Doutrina da Fé, e que João XXIII decidiu devolver à fase de redação. Não se tratava de simples críticas a cada documento em particular, mas, de maneira implícita e num sentido análogo às “mudanças de paradigma” examinadas por Thomas S. Kuhn nas ciências duras, da rejeição radical de um paradigma teológico e da busca de um paradigma alternativo. Como diz o teólogo dominicano brasileiro Carlos Josafat Pinto de Oliveira, antigo professor da Universidade de Friburgo (Suíça), a emergência de um novo paradigma, teológico neste caso, manifesta intenções primordiais e opções fundadoras sobretudo através das quais é rejeitado; porque, nos momentos de transição, sabe-se bem o que não se quer, embora não se saiba bem ainda o que se quer positivamente. De fato, as intervenções dos cardeais, patriarcas e bispos, durante essa primeira sessão do concílio, concordavam, segundo Oliveira, em criticar o caráter a-histórico e intemporalmente unívoco dos documentos preliminares, que não levavam em conta nem a nova consciência histórica da cultura e da filosofia ocidentais, nem os avanços já realizados nesse domínio pelos estudos bíblicos, patrísticos, litúrgicos e sistemáticos, e tampouco indicações do bom Papa João XXIII acerca de uma leitura crente dos sinais dos tempos, como também a “atualização” correspondente da teologia e da pastoral eclesiais num mundo em mudança acelerada. Todos esses aspectos implicavam, ao contrário, uma visão histórica da realidade.
De minha parte, acrescento às considerações de Oliveira o fato de que, com Heidegger, a filosofia, até em representantes precavidos do catolicismo e do tomismo (como Étienne Gilson, a escola de Lovaina ou teólogos como Lubac, Congar, Karl Rahner ou von Balthasar), tinha superado o simples paradigma clássico da substância e estava superando o paradigma moderno do sujeito para se orientar para um novo paradigma não apenas teológico, mas histórico-cultural. Enquanto os dois primeiros paradigmas privilegiavam a identidade, a necessidade, a inteligibilidade e a eternidade como características fundamentais do primeiro princípio e, portanto, da compreensão de Deus, o novo paradigma que emergia, com a sua revalorização da categoria de relação com referência à de substância, convidava a repensar todas essas características a partir da diferença ou da alteridade (a relação), a partir do mistério, dando-se a conhecer como mistério, a partir da gratuidade e do dom e, por conseguinte, da imprevisível novidade histórica.
A mudança de paradigma que decorre disso em ética social aparece com evidência gritante se GS [Gaudium et spes] for comparada com o documento preliminar rejeitado pelos padres conciliares e cujo título era De ordine morali Christiano. Segundo Oliveira, esse documento defendia uma “ordem objetiva e absoluta” sem levar suficientemente em conta a realidade e a objetividade dos fatores humanos subjetivos e históricos, concebia Deus como um “vingador da ordem moral” e defendia uma atitude negativa e autoritária de condenação; tratava-se, em minha opinião, de um “eticismo sem bondade”, como aquele que o Papa Francisco critica na exortação Evangelii gaudium (EG 231). A bondade, de fato, sabe considerar a realidade singular de cada pessoa e de cada situação, e o eticismo é apenas uma caricatura da ética.
Por outro lado, o paradigma ético fundamental de GS não é negativo, mas positivo, porque está orientado pelos princípios da dignidade e da responsabilidade humanas. Esse não é um paradigma ético e social puramente “natural”, mas histórico, porque reconhece as realidades históricas plurais dos povos e das culturas, bem como as das estruturas sociais, políticas e econômicas.»
J.C. Scannone. A Teologia do Povo (raízes teológicas do Papa Francisco), pgs. 186-188.
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