Porque The L Word é tão bom?

Aviso: esse texto contém spoilers sobre o seriado em alguns parágrafos. Se você não assistiu até a terceira temporada e não quer estragar sua diversão (no caso de você não gostar de saber de coisas que aconteceram na história antes de assisti-la, e no caso de você assistir à série, é claro), não leia.

a) há uma concepção de arte que define obra de arte como algo (um livro, um filme, um quadro, qualquer coisa) que causa impacto. Eu não sei explicar muito bem, mas é um impacto do tipo “uau!!!”, quer dizer, algo que impressiona quem está vendo (ou ouvindo, pois pode ser uma música – e vale para os outros sentidos também). Claro, se você atirar uma criança de uma janela você também vai causar impacto (em ambos os sentidos da palavra), mas acho que impacto, nesse caso, se refere a um impacto emocional que não coloque em risco a vida de ninguém, sejam crianças, cachorros ou outras coisas vivas.

b) eu acho que um seriado, tal como um filme ou uma peça de teatro, é uma obra de arte. O fato de ser geralmente concebido como entretenimento não retira, de um seriado, o aspecto de obra de arte que ele contém. Não é só porque Lost é um seriado que vamos jogar todos os seriados na mesma vala comum das coisas idiotas. (observação: isso quer dizer que até Lost é obra de arte – mas eu tenho o direito de julgar certas obras como ruins, não imprta o que milhões de espectadores digam). Aliás, algo que seja concebido como entretenimento, ou que acabe virando entretenimento por acidente, não deixa de ser uma obra de arte só por causa disso (pois você pode ler Sheakspeare ou O Sangue dos Outros só para passar seu tempo, se entreter, sem que essas coisas deixem de ser arte).

c) mesmo que uma obra de arte seja engajada socialmente, não quer dizer, também, que deixe de ser arte. Claro que mesmo uma pintura surrealista, um quadro cheio de borrões, por exemplo, se insere dentro de uma cultura e, como tal, é resultado de alguma relação politica, e causa outras relações políticas (política, aqui, não se refere à tosquice partidária, que é só um aspecto, desagradável, aliás, da política), ainda que essas relações não sejam determinadas. Quer dizer, uma obra de arte, mesmo que não possua pretensão política alguma, está inserida dentro de uma relação política qualquer (porque ela existe em um mundo onde habitam pessoas que estabelecem relações políticas, e uma obra de arte não é imparcial, mesmo que seu autor quisesse que ela fosse – até porque o próprio autor não é imparcial, mesmo que quisesse ser). Se uma obra de arte que se pretende imparcial ou apolítica ainda assim acaba por estabelecer relações políticas e engajamentos sociais sem deixar de ser uma obra de arte, o contrário também vale, ou seja, uma obra de arte declaradamente política, que possua um corte determinado (como The L Word), ou uma intenção política clara (como os romances de Sartre), ou mesmo uma posição de defesa de tal ou qual coisa (como um rap), não deixa de ser obra de arte, sem prejudicar em nada suas posições políticas.

d) The L Word funciona como um porta-voz das lésbicas dos EUA, e, como a maioria dos outros países (com excessão, até onde eu sei, apenas da Espanha) não tem um seriado assim, acaba sendo porta-voz das lésbicas de todo o mundo. Claro que o seriado não defende o lesbianismo (ninguém defende o lesbianismo, uma pessoa é lésbica: o que se defende são direitos para as lésbicas, e a liberdade de amar a quem se quiser), mas mostra a vida de mulheres lésbicas (e meia dúzia de outras orientações sexuais). Não que o seriado seja um porta-voz do tipo “porta-voz do governo”, que fala pelo governo; mas, sim, fala sobre a vida de lésbicas, que, fora do seriado, costumam viver como lésbicas (e “viver como lésbicas” não é muito diferente do que viver como qualquer outra coisa, como heterossexuais, por exemplo, mas há peculiaridades comuns à maioria das lésbicas, como a felicidade ou o preconceito, por exemplo, que não são categorias exclusivas das lésbicas, mas que assumem um conteúdo semelhante quando voltados às lésbicas), mas não costumam ver sua vida representada na TV (convenhamos, Assunto de Meninas pode valer para uma menina que estuda em um colégio interno e ser uma coisa muito boa na promoção da diviersidade e bla blá blá, mas não tem nada a ver com a América Latina, por exemplo, a não ser nos aspectos gerais de descoberta do amor, incompreensão, etc). Mas não é uma Ladyfest – assim como Um Maluco no Pedaço não é um quilombo. O seriado tem um publico-alvo claro (lésbicas), mas geralmente obras de arte não se limitam a atingir somente o grupo que o autor tinha em mente. E, mesmo, pelo que sei, as próprias autoras não definem o seriado como um programa para lésbicas. Mesmo que ele acabe se tornando uma febre entre elas, a palavra L forma muitas palavras.

e) os seriados costumam criar um mundo próprio. Se você nunca assistiu Alias não vai entender que a música perfeita para Sloane seria Used to Love Her (But I Had To Kill Her), mesmo que nunca tenha tocado no seriado; ou se nunca assistiu The Early Edition, não faz sentido pensar na relação entre o gato amarelo e o jornal. Leia Harry Potter ou Dom Quixote que você vai entender bem isso. O mundo que The L Word cria, ainda que seja focado na vida de mulheres lésbicas, lida com questões que tocam praticamente todas as pessoas (eu ia dizer “todas as pessoas”, mas acho que nada no mundo toca todas as pessoas do mundo, com excessão talvez das necessidades fisiológicas ou orgânicas ou biológicas, como respirar ou ir ao banheiro). Relações de amizade, amor, gente filha-da-puta, gente chata, essas coisas todas fazem parte desse mundo. E, ao contrário de algo como, por exemplo, Lost, não é um mundo quimérico – até Harry Potter é mais realista do que Lost. Não que um seriado tenha que ser realista. Se você assistir Gilmore Girls, pode morrer de inveja de uma cidade como Star Hollows, mas não existe uma cidade como Star Hollows, você nunca vai morar num lugar assim (se existir, me avise), mas as coisas pelas quais as duas Lorelais passam, as histórias que se desenrolam, os sentimentos e as atitudes – e as opiniões e reações – dos personagens do seriado são coisas muito reais. Até porque é impossível alguém fazer algo que seja absolutamente desligado da vida real (Lost quase consegue isso).

L) (esse parágrafo contém spoilers) o que faz com que The L Word seja tão bom, afinal, na minha opinião, é que é uma obra artística que inevitavelmente causa emoções inesperadas, e bastante intensas. Sei lá, coisas do tipo Alice ir revirar o lixo atrás do cartaz da Dana, além da questão da obsessão, foi uma das cenas de amor mais legais que eu já vi (mais do que o Bruce Willis indo para o inferno atrás da esposa, ou o Jack morrendo congelado pela Rose, por exemplo); ou, então: eu nunca fiquei tão indignado com um acontecimento em um filme ou um seriado quanto como fiquei quando vi que a Kit estava, sem saber, dentro de uma clínica anti-abortista sem saber que a clínica era anti-abortista. Ainda mais, são histórias bem contadas, cenas bem-feitas, enfim, é algo além de mais um seriadinho sobre aviões caindo em ilhas perdidas ou donas de casa chatas desesperadas.