Livre

há alguns anos encontrei um livro chamado Coração Enfurecido. Me chamou a atenção a descrição nas orelhas da capa, dizendo que o livro era de uma ex-candidata colombiana sequestrada pelas FARC, que ainda estava viva, havia deixado os filhos pequenos, etc. Achei o livro chato, mas desde aquela época torcia para que as FARC a libertassem logo. Faziam um ou dois anos do sequestro dela, tempo suficiente para que ela já fosse dada como morta, e para que as reações dos seus filhos, pequenos então, fossem angustiantes.

Não simpatizo com as FARC, “se pudesse, matarra mil”, como disse Jeremias José. Mas também não acho que sejam os vilões. Veja bem: acho horrível o que fazem, sequestrando pessoas que servem de proteção e moeda de troca para suas exigências. Mas as FARC são tudo aquilo que a sociedade onde estão inseridas também é – e não me refiro à sociedade colombiana. É mais ou menos o que eu penso dos traficantes de drogas em geral: gente horrível, tão horrível como os seus mais ferrenhos opositores.

Mas daí um dia desses leio que libertaram a Ingrid Betancourt (que, se você não se deu conta, foi quem escreveu o livro mencionado acima). “Uau, que alívio! Soltaram Betancourt, agora as FARC deram uma dentro”. Na verdade, ela havia sido resgatada.

Bom, melhor se tivesse sido libertada pelas FARC (melhor que nem tivesse sido sequestrada, para começar). Mas, dos males o menor. Mas qual foi a tática do resgate? “Holla, yo soy tu amigo! Mira la el Che en mi camiseta! Soy de las FARC como tu e voy a llevar estos que estan contigo, si?” Ah, convenhamos, isso funciona em filmes, parece o Luke Skywalker e o Hans Solo disfarçados de soldados do império dentro da Estrela da Morte. Mas, mal-explicado ou não, ela estava solta. Legal. Aí noticiam que houve um pagamento às FARC em troca dela e dos três norte-americanos. Bom, piorou mais, mas, ainda, que bom que libertaram ela.

Então Ingrid Betancourt, minha heroína até pouco tempo, começa a dar declarações sobre a loucura da sua ex-colega de chapa, candidata a vice, dizendo que a mulher tentou afogar o filho que teve com um guerrilheiro. A ex-candidata a vice responde dizendo que Ingrid está viajando.

A França, que nem sabia de Ingrid há pouco tempo atrás, decidiu fazer dela a causa nacional, e adotou ela agora. Estratégia do pequeno smurf Sarkozy?? Ingrid Betancourt, na França, virou a mesma coisa que o carnaval e as copas viram aqui.

Mas ela está solta.

Claro que, menos de uma semana depois do resgate, ela tem o direito de estar bonita, alegre e faceira: além de solta, é bem-vinda na França! Mas quantos ex-reféns de qualquer coisa você vê se recuperarem assim, tão rápido?

Se fosse apenas o fato de ela estar faceira da vida na mídia, ou apenas o fato de possivelmente terem pagado por um falso resgate, ou apenas o fato de ela avacalhar com a ex-candidata a vice dela, ou apenas o fato de estar se deixando usar pelo Sarkozy para virar ícone europeu (eu, que não gosto de Sarkozy, também me deixaria usar tranquilamente), ou apenas o fato de ter sido um resgate tão patético, ou apenas as camisetas do Che e o emblema falso da Cruz Vermelha, enfim, se fosse apenas uma ou duas coisas estranhas, tudo bem. Nenhum ex-refém tem obrigação de seguir protocolo padrão algum.

Eu ainda continuo satisfeito por ela estar livre, finalmente – melhor se mais reféns estivessem, claro. Só que – pode me chamar de influenciável pela mídia, insensível ou paranóico – tem alguma coisa estranha nesta história toda.