“O desprezo (Contemptus) é a imaginação de uma coisa qualquer, imaginação que toca de tal modo pouco a alma que a alma é conduzida, pela presença desta coisa, a imaginar antes o que nela não existe que o que existe…” (Spinoza: Ética, Livro III, Definições das afecções, definição V)
Eu tenho crises de vez em quando. Nada patológico, ou orgânico, ou que seja resolvido com uma boa e velha receita médica, de qualquer modo. São crises emocionais, psicológicas, desse tipo de crises.
Geralmente ocorrem por conta de uma debilidade emocional minha. Quer dizer, se trata de uma incapacidade, naquele momento, de reagir emocionalmente a emoções prejudiciais, como sensação de opressão, de falta de autoestima, falta de perspectiva (desespero, mas moderado), coisas assim. Geralmente essas reações emocionais envolvem não deixar que as emoções mais convenientes sejam sobrepujadas pelas prejudiciais, o que me permite reagir, com alguma ação, contra o que me oprime, ou que me desespera, ou que desvaloriza, ou sub-valoriza, etc. Por isso, eu acho esses momentos de crise semelhante a uma AIDS emocional. Uma imuno-deficiência emocional que, por si só, não causa maiores danos (causa danos, mas reparáveis), mas que debilita minha capacidade de reagir, de me revoltar, de me colocar, essas reações que se tem frente a um ataque alheio. Digo isso considerando que essa situação nem se compara à AIDS, que, por mais tratamento que já possua, ainda assim é sério.
O HIV dessa AIDS emocional é o desprezo. Mas ao contrário do HIV original, este HIV emocional necessita de uma certa colaboração minha para ter forças.
Eu sempre tive problemas com o desprezo alheio. Durante um certo tempo da minha vida, eu me vi sempre sob a perspectiva alheia: se me aceitam, valho alguma coisa, e se não me aceitam, não valho nada, porque eu era tão valioso quanto as outras pessoas julgavam que eu era.
Por algum motivo, eu sofro uma disposição a ser ignorado maior do que a média sofre. Assim, como eu me valorizava segundo o valor que davam para mim, mais essa minha facilidade em ser ignorado, o resultado era um auto-desprezo muito grande. Eu não sei se é a mesma coisa do que uma baixa autoestima, porque uma pessoa com baixa autoestima está convencida de que não vale nada; mas o meu caso era de me valorizar segundo o valor que me davam – quer dizer que hoje eu poderia não valer nada, e amanhã, tudo. Uma pessoa com baixa autoestima ainda afirma alguma coisa de si – afirma que não vale nada – (ainda que afirme algo prejudicial); eu, minha única afirmação era “vocês é que contam”, ou “o que eu valho é o que vocês dizem que eu valho”, como uma ação na bolsa de valores ou um litro de leite em uma prateleira de supermercado, que não possuem valores próprios, mas somente os atribuídos pela lei de oferta e procura exclusivamente, no caso das ações, e pela margem de lucro definida pelo supermercado mais a lei de oferta e procura, no caso do leite. A minha afirmação era de que eu não poderia afirmar nada, só ser afirmado.
O desprezo alheio, portanto, tinha uma força muito grande sobre mim porque eu já me auto-desprezava de antemão, e esse auto-desprezo tanto favorece o desprezo alheio quanto qualquer outra ação alheia sobre mim. Eu não era algo em si (ou em mim), mas algo nos outros. É diferente de um parasita, que depende do hospedeiro para se manter; é mais um caso de um corpo inanimado que depende do ânimo alheio para ter vida, como um boneco de ventríloquo, um fantoche ou um verbo transitivo, ou então um caso de comensalismo, quando um indivíduo tira proveito de outro sem, no entanto, prejudicá-lo – como uma orquídea, que quando não tem acesso ao sol, trepa em outra árvore para ficar mais alta, mas não prejudica a árvore onde trepou; é diferente também de uma simbiose, onde os dois indivíduos se beneficiam.
Aí, depois de muito drama e sofrimento, aprendi a me auto-valorizar. Claro que a estima alheia sempre vem bem, e desprezo sempre vem mal, mas não vivia mais da estima alheia e não morria mais por causa do desprezo alheio.
Ocorre que esse HIV emocional (o auto-desprezo, o comensalismo emocional), tal como o HIV original, é passível de tratamento, mas não de cura. A consequência é que está sempre à espreita, não é eliminado. Mas habitualmente aprendi a mantê-lo em seu lugar.
Somente em momentos de crise é que esse HIV emocional ganha forças, e eu sinto como se realmente eu não valesse nada, especialmente quando certas frentes de combate não oferecem, de maneira alguma, um cessar-fogo devido à crise (uma observação especial às minhas chefes no trabalho que baixaram as armas nesse momento, o que me deixou na insólita e nunca ocorrida situação de me sentir melhor no trabalho do que em casa).
A debilidade emocional, a crise, os momentos de crise mais forte, ocorrem de uma maneira que ainda não sei identificar: um cansaço emocional, um momento de fraqueza que oportuniza uma devastação emocional, um conjunto de muitas situações adversas que acabam me vencendo naquele momento, eu não sei ainda.
Mas para isso que serve aquela concepção de desprezo descrita por Spinoza na sua Ética: se o desprezo é quando alguém, ao me ver, percebe mais o que eu não tenho (ou não sou) do que o que tenho, o auto-desprezo é quando eu somente vejo o que eu não tenho – e a maneira de combater isso é descobrir, e mesmo criar, se necessário, eu.