Breve contextualização (descaradamente parcial e fundamentada nas interpretações do que eu acho que me lembro de ter lido sobre os envolvidos)
A única justificativa aceitável da Rússia para invadir a Ucrânia, excluindo as desculpas esfarrapadas de lutar contra o neonazismo e a corrupção, é deter um avanço ainda maior da OTAN em direção às fronteiras russas, que já se avizinham na Noruega, e também na Geórgia, que a Rússia anexou (criminosamente) e faz divisa com a Turquia, sem contar ainda Kaliningrado, um território russo separado do resto do país que faz fronteira com a Lituânia e a Polônia. Se apenas a Ucrânia e a Finlândia entrarem para a OTAN, somente o sul da Rússia não ficaria cercado por aliados norte-americanos, atrapalhando muito o regime de envenenamentos e invasões de Putin para manter-se no poder.
A OTAN lembra muito os comensais da morte reunidos em torno de Voldemort nos tempos em que todos estavam em Hogwarts, “fracos em busca de proteção, ambiciosos em busca de alguma glória compartilhada e bandidos gravitando em direção a um líder que lhes mostrasse formas mais refinadas de crueldade”, embora o princípio de formação da OTAN seja simples e bem-intencionado: mexeu com um mexeu com todos.
A Ucrânia tem uma clara preferência por ser explorada pelos EUA, via OTAN, em vez de ser explorada pela Rússia, que já faz isso desde os tempos dos czares, o que não parece uma má ideia (escolher a OTAN), se considerar que as suas alternativas se resumem a dois males mutuamente excludentes.
Princípios católicos da guerra justa
O Catecismo da Igreja Católica apresenta os princípios de uma guerra justa no número 2309:
– que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidade de nações seja duradouro, grave e certo;
CIC, Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
– que todos os outros meios de lhe pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes;
– que estejam reunidas condições sérias de êxito;
– que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. O poder dos meios modernos de destruição tem um peso gravíssimo na apreciação desta condição.
A Rússia parece satisfazer os últimos três requisitos, mas não o primeiro, já que sua única intenção é manter a OTAN distante do oeste do país, e a agressividade (quase sempre) passiva da OTAN não justifica a agressão contra a Ucrânia.
A Ucrânia está apenas se defendendo, se bem que impedir os homens de deixar o território e estimular civis a combaterem são medidas indefensáveis sem precisar recorrer a nenhum catecismo nem qualquer princípio religioso que seja, já que isto faz com que o sofrimento e o risco de morrer recaiam sobre a população ucraniana. A impressão que isto dá é que se fosse a Ucrânia no lugar da Rússia, a Ucrânia faria o mesmo, mas nem isto justifica a invasão agressiva russa.
A OTAN não está matando ninguém (neste conflito em particular) enquanto dá à Ucrânia condições de matar um punhado dos inimigos de ambos enquanto os ucranianos, armados ou não, arriscam suas vidas contra o exército russo.
Considerando os envolvidos e a doutrina católica de guerra, quem parece estar errando muito é a OTAN, a Ucrânia, a Rússia e também os princípios católicos da guerra justa.
Ou é guerra ou é justa
Desde o papa Bento XV que a ideia de uma guerra justa vem perdendo a força. Talvez fosse até possível discutir a legitimidade desta doutrina quando o que se entendia por “guerra” eram bandos armados de espadas se enfrentando (mas a conclusão já deveria ter sido a mesma, que não há guerra justa). Não é que não hajam argumentos para entrar em uma guerra, mas todos eles passam longe de qualquer princípio cristão (nem o trecho do “venda sua capa e compre uma espada” serve aqui, já que pelo menos neste caso não se tem notícias de mortos por alguma espada perdida, embora seja necessário atropelar todo o restante do Evangelho para comprar até mesmo uma espada com base nesta passagem).
Se o papa Francisco vem cada vez mais deslegitimando esta doutrina, é porque as palavras de Cristo não mudam, mas o entendimento que se tem delas não apenas pode como deve evoluir, à exemplo da tolerância à pena de morte.
O único objetivo da guerra é a morte, e a morte não gera nem a justiça, nem a paz, pelo contrário, “O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz.” (Tg 3,18)