quinta-feira da segunda semana do Advento (festa de Nossa Senhora de Guadalupe)

“Dogma” deriva do grego [“dogma” em caracteres gregos que não tem no meu celular] e significa “aquilo que aparenta; opinião ou crença”, e essa palavra em caracteres gregos deriva de outra, também em caracteres gregos (“dokeo” em letras normais) que significa “pensar, supor, imaginar” (cf. o verbete “dogma” da Wikipédia em português).

Antes de revoltar-se contra os dogmas católicos, convém pensar nas guerras dogmáticas contemporâneas: o preconceito, por exemplo, é uma heresia (segundo a Wikipédia, “heresia” significa “escolha ou opção”, cf. o respectivo verbete). A negação do preconceito é um dogma.
Ambos, heresia e dogma, são muito parecidos: ambos têm a ver com um dogma, mas somente a heresia é opcional, enquanto que o dogma é inevitável como uma verdade. Afinal o que pode ser verdade, o preconceito ou a sua negação? Escolher a sua negação é como convencer-se de que um mais um é igual a dois, mas não por uma imposição lógica, e sim pelo triunfo do bom senso. Mas a escolha pela verdade não é como a escolha entre alternativas igualmente válidas entre si, e sim a escolha correta (pois existem na vida, como nas provas, respostas corretas), porque o possível não adquire validade e nem valor apenas por ser possível.

O dogma é a escolha pela verdade, pura e simplesmente. É um dogma apenas porque não pode ser demonstrada enquanto verdade, como pode ser demonstrada a verdade de que um mais um é dois. E também é, o dogma, a expressão da verdade – a negação do preconceito, no caso deste exemplo.

Obviamente as questões sociais não são um embate entre dogmas e heresias, era só uma analogia do que significam os dogmas católicos enquanto verdades que, indemonstráveis, ainda assim são verdadeiras e, além disto, implicam em negar a alternativa falsa.

Há dois dogmas católicos muito importantes (entre outros igualmente importantes): a encarnação de Cristo e a sua natureza tanto humana quanto divina.
O primeiro dogma diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, e o segundo, que não deixou de ser o Verbo por isto, e nem deixou de ser plenamente humano por ser o Verbo encarnado.
A Igreja sempre acrescenta “igual a nós em tudo, menos no pecado”, o que é verdade, mas omite (pela praticidade) toda a reflexão sobre o pecado ser desumano apesar de ser parte da condição humana, pelo menos entre este período de tempo entre a queda de Adão e Eva e o juízo final – depois do qual seremos, então, plenamente humanos.

Estes dois dogmas, a Encarnação e a Dupla Natureza (de Cristo), são importantes por causa do fundamento da esperança cristã: a ressurreição de Cristo.
Um Cristo Ressuscitado exclusivamente divino que fundamente a esperança cristã é como dizer que o trabalho enriquece exemplificando isto com os ricos herdeiros que trabalharam verdadeiramente para justificar a posse do que seria deles mesmo se não tivessem tido todo este trabalho. Ou seja, Cristo abriu mão de seus recursos divinos para ser santo, sendo-o, portanto, em igualdade de condições conosco (exceto a condição do pecado), pois do contrário seria simples dizer “mas eu não posso fazer isto porque não sou Deus como é Cristo”. Trabalhar para ficar rico é uma furada como seria uma furada correr atrás de uma santidade acessível apenas a Deus. A ressurreição é uma obra exclusivamente divina, mas a santidade, condição para a Ressurreição, é humanamente possível, e o dogma que atribui a Encarnação a Cristo conta exatamente isto: era um ser humano, gente como a gente.

Só que este dogma não pode ser reduzido ao absurdo, o que consiste em negar a divindade de Cristo. Se Cristo não era Deus, então a humanidade que se salve. Se Cristo era só humano, Deus o recompensou por seu gigantesco esforço como quem paga uma dívida (e aí a santidade vira uma moeda, cujos proprietários poderão usar para exigir de Deus o que lhes cabe de direito), fazendo de Deus não mais Aquele que vem até nós, proativo em nosso favor, mas sim um Carimbador Divino menor do que a regra que lhe obriga a carimbar a ressurreição dos nobre e abnegados esforçados credores de Deus. Fazer do banco um deus é idolatria, mas fazer de Deus um banco é heresia.
Deus não deve nada a ninguém, mas em compensação é mais generoso do que qualquer ricaço consciente que possa existir.

Então Deus se fez carne, a santidade é acessível ao simples ser humano e a salvação é uma dádiva divina. É o que dizem os dois dogmas e deles podemos concluir muitas coisas, inclusive a interação entre Deus e o homem, tão desnecessária para Deus quanto necessária para o homem. Cristo, Deus e homem sob todos os aspectos, atua em colaboração conosco para o nosso benefício – colaborar com Deus é uma necessidade da gente e não de Deus. E qual representante do Homem pode se apresentar como modelo e exemplo de colaboração com Deus? Cristo? Mas Cristo se fez homem para que ninguém diga que Deus não sofreu na carne o que sofremos. João Batista? Mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele – ou seja, é um grande modelo mas não é o modelo maior. Os Apóstolos? Mas os apóstolos passaram o evangelho todo vacilando, e só o Espírito Santo pôde dar um jeito nisso quando veio em Pentecostes.
Nós precisamos colaborar com Deus sem vacilar, dizendo sim a Ele e, ainda por cima, ser sermos espectadores passivos do espetáculo da salvação. João Batista veio preparar o caminho de Cristo, e não percorrer o caminho. Os apóstolos só por milagre entenderam as palavras de Cristo (literalmente, pois foi necessária a intervenção direta do Espírito Santo e de Cristo, no caso de Paulo, para entenderem e agirem segundo a vontade de Deus.
Então quem já dizia “fazei o que ele vos disser” (certamente sob a inspiração do Espírito Santo mas) antes de Pentecostes? João Batista foi o precursor de Cristo, e não da nossa santidade. Fomos salvos pela morte e ressurreição de Cristo, então podemos esperar sentados que ele venha nos salvar?

Quando os apóstolos estavam indo com a farinha, Maria já estava voltando com o bolo. Ainda que todos – Maria, os apóstolos e nós – dependamos da graça imerecida de Deus, somente um de nós todos fez isto – ajudar Deus – primeiro, e de um jeito que ninguém mais poderia ajudar.

Portanto, enquanto os dois dogmas apresentam Deus entre nós e compartilhando dos mesmos problemas (até boletos Cristo tinha que pagar, basta ver o episódio da moeda dentro da boca do peixe).

Maria, pelo contrário, somos nós colaborando com Deus. É muito fácil identificar-se com Cristo e se agarrar na parte divina da identificação (quantos cristãos não preferem, por exemplo, imitar Cristo dizendo “não me toqueis porque ainda não subi ao Pai” do que imitar Cristo defendendo uma prostituta do linchamento?). Imitar Cristo é imprescindível, porém apenas imitar não basta, senão os dois ladrões crucificados com ele teriam sido expressamente admitidos no Reino. É necessário deixar-se redimir ao mesmo tempo em que se trabalha por esta redenção.

E é isto, ser redimido, que se comemora nestas comemorações marianas: não uma redentora, pois foi Cristo quem nós salvou, mas a redimida-mor, a redimida das redimidas. Se as ações dos Apóstolos, do Batista e de tantos outros personagens evangélicos podem nos servir de inspiração, quanto mais poderemos da primeiríssima colaboradora de Cristo.