Tradições orais da Bíblia

Talvez tudo isto pareça um tanto teórico e sem relação com a Biblia. No entanto, é um fato que uma boa proporção de escritos bíblicos foi composta com base em tradições orais. Prova disso é que encontramos:

Duplicações:

  • duas tradições de um mesmo “tema”, por exemplo, dois relatos da criação (Gn 1,2-4a e 2,4b-25). As histórias sobre a jarra de azeite que não acabava e da ressurreição de um jovem se contavam tanto de Elias como de Eliseu (1Rs 17; 2Rs 4). Há dois relatos, porque foram duas as tradições diferentes, independentes uma da outra, uma relacionada ao “ciclo de Elias”, e a outra ao círculo de Eliseu.

Pontos de vista divergentes sobre um mesmo fato:

  • por exemplo, 15m 9,1-10.16; 11 é um relato da instituição da monarquia favorável a ela, enquanto 15m 8,1-22; 10,17-27 é contrário à sua instituição: são duas tradições com duas interpretações totalmente diferentes sobre um mesmo fato, provenientes de duas experiências históricas distintas. Menção explícita do emprego de tradições ou fontes de informação, como se lê em Js 10,13 (“o livro de Yashar”), em 1Rs 11,41 (“o livro dos feitos de Salomão”), em 1Rs 14,19 (“o livro das crônicas dos reis de Israel”), em 1Rs 15,7 (“o livro das crônicas dos reis de Judá”), e como o faz Lucas no início de seu Evangelho (1,3).

Faltas de ordem lógica:

  • por exemplo, segundo Gn 17,25, Ismael era um rapaz “de treze anos” ao ser circuncidado, mas quatro capítulos mais tarde, em 21,14, o mesmo Ismael resulta ser um menino que tem de ser carregado por sua mãe.

A presença de anacronismos:

  • estes resultam de atualizações de antigas tradições; por exemplo, em Gn 4, Caim e Abel aparecem como agricultor e pastor respectivamente (v. 2), não como nômades, e sua vida se situa junto com a existência de outros povos (v. 14s): como isto é possível, se são filhos de Adão e Eva e supostamente foi há pouco começada a raça humana? Isto se compreende, quando se toma consciência de que o relato que possuímos provém de uma época em que Israel já estava estabelecido na Palestina.

Por estes e outros traços se deduz que existiram muitas tradições orais que tiveram diversas origens e se relatavam independentemente umas das outras, antes de serem reunidas e fixadas por escrito. Detenhamo-nos agora na tradição oral como tal.”

A Bíblia sem mitos, pgs. 65-66