As maldades de Deus

Quando Jesus Cristo, que é a segunda pessoa da Santíssma Trindade, assumiu as culpas da humanidade pagando por todas elas na Cruz, ele fez algo novo mas não muito diferente do que Deus vinha fazendo ao longo de todo o Antigo Testamento.

Deus, que não é mau, passou o Antigo Testamento inteiro sendo apontado como o responsável por não sei quantos males, chagas e doenças, seja do seu próprio povo, seja dos inimigos de seu povo. Esta atribuição é característica do pensamento religioso daqueles tempos, e embora até o próprio Deus tenha assumido o personagem do Deus malvadão, o fato é que as manifestações de misericórdia e bondade divina são muito mais significativas do que a sua “maldade” (mesmo que às vezes esta misericórdia venha acompanhada da irritação de Deus, que muitas vezes diz que vai salvar, voltar atrás da promessa de castigo, perdoar, etc., apesar de o povo merecer a maldade evitada).

Tudo isto, o retrato do Deus muito malvado, às vezes é o reconhecimento, por parte do profeta, do povo, de quem esceveu o texto bíblico, do poder de Deus (que não vai dizimar a humanidade, mas só porque não quer e não porque não pode).

Este olhar do profeta Jeremias, que chora lágrimas sem fim lamentando o sofrimento alheio, é mais próximo do olhar de Deus que, mesmo irritado (não sem razão), sofre o sofrimento das pessoas, de cada uma delas. Tanto é que Cristo, no fim das contas, não lançou fogo e enxofre sobre quem o matou, mas deixou-se crucificar e ainda perdoou todo mundo enquanto pagava pelos pecados que não tinha cometido.

Deus, que é santo, sem pecados, puro e inocente (sem deixar de ser poderoso e inigualável), oferece a paz e o amor a nós, que somos pecadores, impuros e culpados (além de nada poderosos, mas muito comuns); mas nós apontamos o dedo para os outros quase mais rápido que o diabo fugindo da cruz: pedimos segurança e nos contentamos que ela seja às custas de gente sofrendo dentro de presídios, pedimos paz e nos contentamos que ela seja às custas de policiais que não sabem se vão voltar para casa no fim do turno, pedimos amor e nos contentamos que ele seja às custas de quem não consegue receber amor; pedimos justoça e nos contentamos que ela seja às custas da injustiça alheia, pedimos pão e nos contentamos que ele seja às custas da fome dos outros (etc.).

Aí não é que Deus não queira dar o que pedimos, mas enquanto nós mesmos promovemos a maldade para nos beneficiarmos disto, porque Deus iria impedir a maldade alheia quando não impede a nossa própria maldade? Enquanto os outros sofrem com os nossos pecados, Deus, que é Pai de todos vai isentar apenas meia dúzia de sofrerem dos pecados alheios?

Em várias passagens do Novo Testamento está escrito que o importante é crer em Cristo e isto basta para ir para o céu. Mas toda a longa e complexa rede de conselhos, exortações, proibições e obrigações serve para não ir para o céus às custas do sofrimento alheio. Não que eu saiba quem vai ou não e nem determine as condições de um ou outro resultado, mas, seja no céu ou no inferno, todos corremos o risco de passar a eternidade tendo que encarar – eternamente – as pessoas que desprezamos, odiamos matamos ou deixamos morrer. Se for no céu, melhor passar a eternidade de bem com todo mundo que estiver lá.