A democracia só é o melhor sistema de governo que temos na medida em que prezamos a liberdade. Perde-se muito com com este sistema (como eficiência, agilidade, coerência, etc.), e tudo o que se perde com ele não vale a liberdade que o fundamenta, o que faz da democracia até hoje e provavelmente por todo o futuro, a única opção aceitável de governo.
O maior risco na democracia é a parte do “demo” (que é “povo” em grego, nada a ver com a Bíblia aqui), pois a vontade soberana do povo sempre pode ser o pior que poderia haver entre as opções disponíveis, sem contar que é o próprio povo quem aceita e, de certo modo, cria estas opções. A voz do povo é soberana, mas não é a voz de Deus.
Um governo de especialistas, que se não me engano era o que Platão sugeria em algum livro cujo nome eu não me lembro, não seria melhor do que a democracia, e é o que vemos pelo resultado das últimas eleições, os escolhidos pelo povo prometendo especialistas governando o país para salvá-lo do PT, do comunismo, do Lula, etc., etc.
Nestas eleições a voz do povo não foi considerada apenas a voz de Deus: a voz do povo elegeu o próprio Deus nos representantes que passaram a representar ao mesmo tempo o povo e Deus – pelo menos no que diz respeito à imagem que o governo Bolsonaro vende de si próprio.
Isto por si só não abala a democracia, mas o “viés” totalitarista deste governo abala a democracia e também abala Deus, ou melhor, as nossas relações com Ele. Afinal, Deus não é como Bolsonaro “profetiza”, mas o presidente tem, sim, uma voz poderosa que confunde até quem se esforça para ouvir a Deus apesar da barulheira governamental (“apesar da” e não “na” barulheira governamental).
Isto não é novidade, e Jeremias – este sim um profeta e a voz de Deus – foi preso pelo povo, o mesmo povo a quem Deus se dirigia por meio do profeta. O mesmo povo que elegeu Bolsonaro. Se politicamente o povo é soberano, religiosamente não o é. Assim como também não o são os especialistas, que no texto da primeira leitura de hoje, são os sacerdotes e os profetas. Assim como no governo Bolsonaro o povo e os especialistas erraram, do mesmo jeito o povo errou prendendo Jeremias.
São todos santos, santos demais: os profetas, os sacerdotes, o povo, o governo Bolsonaro, os pastores fenômenos-de-popularidade que o apoiam (ou “apóiam”? – agora eu entendo os idosos que ainda não se acostumaram a ler “farmácia” sem o “ph”), até padres e quem sabe quais bispos não deram este apoio à eleição dele – todos santos, todos muito santos.
É por isto que Santo Inácio de Loiola deixou escrito (nos seus Exercícios Espirituais que eu nunca li, pois peguei a citação no Wiquiquote) que «Muita sabedoria unida a uma santidade moderada é preferível a muita santidade com pouca sabedoria.» Certamente não foram critérios santos nem sábios que levaram à eleição deste governo, mas talvez um excesso de santidade que, sem sabedoria, é nefasta, e a situação do país comprova o ensinamento de Santo Inácio.
Talvez a eleição de Bolsonaro faça parte do projeto de Deus, como a minha mãe uma vez me deixou encostar no ferro de passar quente só para eu aprender a não tocar mais nele (e, como brinde, hoje ainda tenho uma ótima desculpa para não gostar de passar roupa); talvez (quem sabe?) o presidente fosse mesmo o eleito de Deus mas meteu os pés pelas mãos (pois Deus dá corda prá todo mundo, e não tem culpa que alguns a usem para se enforcar ao invés de usá-la para ajudar a salvar os outros); eu particularmente acredito que Deus aguenta este tipo de burrice porque, sendo Deus, sabe tirar o bem até do mal – as famosas linhas tortas da escrita certa de Deus.
Mas com uma santidade moderada e um pouco mais de sabedoria, talvez não precisácemos entortar tanto estas linhas, o que talvez dê um pouco mais de trabalho para Deus, mas no que nos diz respeito, estas linhas que nós entortamos acabam arriscando as nossas vidas, como vemos diariamente acontecer diante desta pandemia.