O aborto é o resultado final de uma sequência de crimes e pecados: a omissão do governo, a violência, o machismo, a ausência de limites, a ausÊncia de infra-estruturas básicas. Tudo isto, cada ponto desta linha do mal pressionando o próximo e sendo pressionado pelo anterior, vai concentrar a somatória de pressões exatamente sobre o ventre da mulher – ou da criança, como no caso da menina de dez anos do Espírito Santo.
Se os grupos de pressão, uma outra linha que também amarrar uma das suas pontas nas mulheres, à altura dos seus ventres, estivessem preocupados com a vida, com Deus ou com as mulheres, não as encontrariam apenas na hora do aborto.
Aliás, não se pode dizer que estes grupos não se preocupem com a vida, Deus ou as mulheres, mas pergunta-se o que eles entendem por estes termos, para conseguirem manter o silêncio enquanto Deus é violentado nas mulheres que sofrem abuso mas não engravidam, nos negros cujas vidas são ceifadas diariamente, nas crianças que são abusadas sistematicamente…
O aborto é, sim, um pecado, e a sua defesa uma violência (espiritual) contra si. Mas é um pecado que, sem perder nada da sua gravidade por isto, é resultado de outros pecados que acontecem cotidianamente, sistematicamente, sem que estes grupos se manifestem contra eles.
Quando eles acordam e reagem, repentinamente, diante da ameaça de um aborto, eles estão coando o mosquito com muito zelo (um mosquito que deveria, sim, ser coado), mas engolem no mais completo silêncio o camelo, sem nunca abaixar o dedo em riste apontado contra outrem, tenha outrem dez ou cem anos.
Cristo não veio para deixar passar o mosquito, e sim para começarmos a não deixar passar o camelo. É necessário se opor ao aborto, mas nada, nem isto, justifica tocar o terror às mulheres, ainda mais às crianças. Se o ardor do amor à vida não for capaz de se mobilizar contra toda a violência prévia ao aborto, o ardor pró-vida só conseguirá queimar tudo a sua volta, numa violência diferente, mas análoga à que pensa combater.