quinta-feira da segunda semana do Advento (festa de Nossa Senhora de Guadalupe)

“Dogma” deriva do grego [“dogma” em caracteres gregos que não tem no meu celular] e significa “aquilo que aparenta; opinião ou crença”, e essa palavra em caracteres gregos deriva de outra, também em caracteres gregos (“dokeo” em letras normais) que significa “pensar, supor, imaginar” (cf. o verbete “dogma” da Wikipédia em português).

Antes de revoltar-se contra os dogmas católicos, convém pensar nas guerras dogmáticas contemporâneas: o preconceito, por exemplo, é uma heresia (segundo a Wikipédia, “heresia” significa “escolha ou opção”, cf. o respectivo verbete). A negação do preconceito é um dogma.
Ambos, heresia e dogma, são muito parecidos: ambos têm a ver com um dogma, mas somente a heresia é opcional, enquanto que o dogma é inevitável como uma verdade. Afinal o que pode ser verdade, o preconceito ou a sua negação? Escolher a sua negação é como convencer-se de que um mais um é igual a dois, mas não por uma imposição lógica, e sim pelo triunfo do bom senso. Mas a escolha pela verdade não é como a escolha entre alternativas igualmente válidas entre si, e sim a escolha correta (pois existem na vida, como nas provas, respostas corretas), porque o possível não adquire validade e nem valor apenas por ser possível.

O dogma é a escolha pela verdade, pura e simplesmente. É um dogma apenas porque não pode ser demonstrada enquanto verdade, como pode ser demonstrada a verdade de que um mais um é dois. E também é, o dogma, a expressão da verdade – a negação do preconceito, no caso deste exemplo.

Obviamente as questões sociais não são um embate entre dogmas e heresias, era só uma analogia do que significam os dogmas católicos enquanto verdades que, indemonstráveis, ainda assim são verdadeiras e, além disto, implicam em negar a alternativa falsa.

Há dois dogmas católicos muito importantes (entre outros igualmente importantes): a encarnação de Cristo e a sua natureza tanto humana quanto divina.
O primeiro dogma diz que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”, e o segundo, que não deixou de ser o Verbo por isto, e nem deixou de ser plenamente humano por ser o Verbo encarnado.
A Igreja sempre acrescenta “igual a nós em tudo, menos no pecado”, o que é verdade, mas omite (pela praticidade) toda a reflexão sobre o pecado ser desumano apesar de ser parte da condição humana, pelo menos entre este período de tempo entre a queda de Adão e Eva e o juízo final – depois do qual seremos, então, plenamente humanos.

Estes dois dogmas, a Encarnação e a Dupla Natureza (de Cristo), são importantes por causa do fundamento da esperança cristã: a ressurreição de Cristo.
Um Cristo Ressuscitado exclusivamente divino que fundamente a esperança cristã é como dizer que o trabalho enriquece exemplificando isto com os ricos herdeiros que trabalharam verdadeiramente para justificar a posse do que seria deles mesmo se não tivessem tido todo este trabalho. Ou seja, Cristo abriu mão de seus recursos divinos para ser santo, sendo-o, portanto, em igualdade de condições conosco (exceto a condição do pecado), pois do contrário seria simples dizer “mas eu não posso fazer isto porque não sou Deus como é Cristo”. Trabalhar para ficar rico é uma furada como seria uma furada correr atrás de uma santidade acessível apenas a Deus. A ressurreição é uma obra exclusivamente divina, mas a santidade, condição para a Ressurreição, é humanamente possível, e o dogma que atribui a Encarnação a Cristo conta exatamente isto: era um ser humano, gente como a gente.

Só que este dogma não pode ser reduzido ao absurdo, o que consiste em negar a divindade de Cristo. Se Cristo não era Deus, então a humanidade que se salve. Se Cristo era só humano, Deus o recompensou por seu gigantesco esforço como quem paga uma dívida (e aí a santidade vira uma moeda, cujos proprietários poderão usar para exigir de Deus o que lhes cabe de direito), fazendo de Deus não mais Aquele que vem até nós, proativo em nosso favor, mas sim um Carimbador Divino menor do que a regra que lhe obriga a carimbar a ressurreição dos nobre e abnegados esforçados credores de Deus. Fazer do banco um deus é idolatria, mas fazer de Deus um banco é heresia.
Deus não deve nada a ninguém, mas em compensação é mais generoso do que qualquer ricaço consciente que possa existir.

Então Deus se fez carne, a santidade é acessível ao simples ser humano e a salvação é uma dádiva divina. É o que dizem os dois dogmas e deles podemos concluir muitas coisas, inclusive a interação entre Deus e o homem, tão desnecessária para Deus quanto necessária para o homem. Cristo, Deus e homem sob todos os aspectos, atua em colaboração conosco para o nosso benefício – colaborar com Deus é uma necessidade da gente e não de Deus. E qual representante do Homem pode se apresentar como modelo e exemplo de colaboração com Deus? Cristo? Mas Cristo se fez homem para que ninguém diga que Deus não sofreu na carne o que sofremos. João Batista? Mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele – ou seja, é um grande modelo mas não é o modelo maior. Os Apóstolos? Mas os apóstolos passaram o evangelho todo vacilando, e só o Espírito Santo pôde dar um jeito nisso quando veio em Pentecostes.
Nós precisamos colaborar com Deus sem vacilar, dizendo sim a Ele e, ainda por cima, ser sermos espectadores passivos do espetáculo da salvação. João Batista veio preparar o caminho de Cristo, e não percorrer o caminho. Os apóstolos só por milagre entenderam as palavras de Cristo (literalmente, pois foi necessária a intervenção direta do Espírito Santo e de Cristo, no caso de Paulo, para entenderem e agirem segundo a vontade de Deus.
Então quem já dizia “fazei o que ele vos disser” (certamente sob a inspiração do Espírito Santo mas) antes de Pentecostes? João Batista foi o precursor de Cristo, e não da nossa santidade. Fomos salvos pela morte e ressurreição de Cristo, então podemos esperar sentados que ele venha nos salvar?

Quando os apóstolos estavam indo com a farinha, Maria já estava voltando com o bolo. Ainda que todos – Maria, os apóstolos e nós – dependamos da graça imerecida de Deus, somente um de nós todos fez isto – ajudar Deus – primeiro, e de um jeito que ninguém mais poderia ajudar.

Portanto, enquanto os dois dogmas apresentam Deus entre nós e compartilhando dos mesmos problemas (até boletos Cristo tinha que pagar, basta ver o episódio da moeda dentro da boca do peixe).

Maria, pelo contrário, somos nós colaborando com Deus. É muito fácil identificar-se com Cristo e se agarrar na parte divina da identificação (quantos cristãos não preferem, por exemplo, imitar Cristo dizendo “não me toqueis porque ainda não subi ao Pai” do que imitar Cristo defendendo uma prostituta do linchamento?). Imitar Cristo é imprescindível, porém apenas imitar não basta, senão os dois ladrões crucificados com ele teriam sido expressamente admitidos no Reino. É necessário deixar-se redimir ao mesmo tempo em que se trabalha por esta redenção.

E é isto, ser redimido, que se comemora nestas comemorações marianas: não uma redentora, pois foi Cristo quem nós salvou, mas a redimida-mor, a redimida das redimidas. Se as ações dos Apóstolos, do Batista e de tantos outros personagens evangélicos podem nos servir de inspiração, quanto mais poderemos da primeiríssima colaboradora de Cristo. 

Quarta-feira da segunda semana do Advento

Quando HAL 9000 tentou matar toda a tripulação do Discovery, depois de ter inventado um problema na antena que fazia a comunicação com a Terra, ele procurava resolver da forma mais lógica possível um conflito dentro da sua programação: por um lado ele fora originalmente programado para dar informações e respostas completas e verdadeiras sobre tudo o que lhe fosse perguntado; por outro lado, o governo dos EUA não queria que os objetivos reais da missão fossem revelados até que a nave chegasse a Júpiter, e para isto deu a informação a HAL, mas programou-o para que não revelasse isto aos astronautas durante a viagem.
HAL fez o que lhe pareceu mais óbvio: tentou cortar a comunicação com a Terra, que era quem lhe forçava a mentir contra a sua programação, e tentou matar a tripulação da Discovery, para não ter para quem mentir contra a sua programação.
Por sorte HAL é uma personagem de ficção, mas este fardo, a mentira, é um fardo que nós, pessoas reais, muitas vezes carregamos: seja por uma orientação de instâncias hierárquicas superiores, como chefes que proíbem divulgar segredos empresariais, seja por estratégia, como um criminoso que nega o crime que cometeu enquanto não encontram provas contra ele, por exemplo; a mentira, que é um fardo, às vezes parece até uma vantagem, como a pessoa que trai o cônjuge e se deleita em não precisar se abster de seus desejos nem de precisar se desgastar com a revelação da traição, ou o clássico político que descobre uma forma de ganhar dinheiro indevido graças a sua posição… aliás, são inúmeros os exemplos.

A questão é que a mentira é um fardo, mesmo quando parece uma vantagem. Sua falsa leveza nós verga sem percebermos, e às vezes demora tanto que temos a oportunidade de botar a culpa desta prostração em outras coisas, enquanto o peso das mentiras nos oprime.
E a mentira é só um destes pecados que, em doses pequenas e em contextos inofensivos, é socialmente aceito por ser leve, tão leve quanto a pluma que pousa na simples e suave coisa, como na música dos Secos e Molhados (embora o amor, que é título da música e também o objeto, não mencionado, que é leve como uma pluma na letra da música, não se identifique como pecado, é óbvio).
Há tantos pecados levíssimos, irreconhecíveis quando pesados pois só os reconhecemos camuflados pela leveza, que nos levam a atribuir o peso a outras coisas…

Cristo certamente alivia o fardo de pesos que não envolvem diretamente pecados: a miséria e a fome (que não são culpa dos miseráveis e esfomeados, e sim um pecado coletivo da humanidade), a doença e o sofrimento, a solidão e o desespero, as guerras e seus horrores (tudo isto também é fruto de um pecado coletivo, e Cristo alivia os fardos das consequências deles, bem como os fardos dos que procuram cuidar das vítimas destas violências).
Mas isto é ao mesmo tempo óbvio e complexo: pecados sociais, pecados coletivos e estruturais, pecados do sistema nos pesam mesmo que não sejamos as vítimas diretas, e há os que carregam outro fardo, os que zelam pelo cuidado das vítimas imediatas – pesos que Cristo alivia também, e que certamente são os destinatários imediatos e preferenciais do texto do evangelho de hoje. Um assunto tão importante que é melhor deixar para os padres nas suas homilias e teólogos nos seus estudos.

Eu queria me referir apenas a estes fardos enganosos – um deles é a mentira e serviu como exemplo – que enganam por não parecerem fardos e se apresentarem com uma leveza às vezes até libertadora. Tão leves na aparência que, quando pesam, parece impossível que sejam a causa de andarmos curvados pela vida afora.
E são estes fardos, creio eu, que Cristo alivia quando “tomamos sobre nós o jugo Dele” (cf. Mt 11,29).

Mas qual será o “jugo suave” e o “fardo leve” de Cristo? Não deve ser a Cruz, pesada em todos os sentidos.

Deve ser a vontade de Deus – esta sim, levíssima a ponto de ser quase imperceptível, como a doçura de uma cenoura que as doçuras artificiais impedem nosso paladar de perceber.
A verdade, que é uma vontade de Deus e o complemento do exemplo neste texto, pode parecer de um peso arroz. Há anos Álvaro de Campos aguarda “ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia” (Poema em Linha Reta), e é esta a maneira como, ainda dentro deste exemplo, o jugo é suavizado: falando a verdade (seja sobre pecados, seja sobre infâmias) sobre as coisas.
E falar a verdade é difícil, é inconveniente; às vezes a verdade pode até ser usada tão malevolamente quanto um pecado (como denunciar as mentiras alheias para desviar a atenção das mentiras do próprio denunciante). Mas por mais que possa trazer muitos problemas, a verdade está alinhada com Cristo (que é caminho, verdade e vida), cujo jugo é suave e o fardo é leve.

Se é possível delinear assim assim tão claramente (embora este texto seja confuso) a leveza do jugo de Cristo (a verdade) contraposta à falsa leveza da mentira, quanto mais haverá descanso em carregar o fardo de Cristo em outras situações que não aparecem tão claras assim.

terça-feira da segunda semana do Advento

Um padre em uma missa mencionou, um dia desses, um santo afirmando que o pecado era uma coisa ótima, porque quando pecamos temos necessidade de sermos resgatados por Deus.
Eu não lembro o nome do santo, e embora eu tenha entendido o sentido da afirmação, achei um tanto ousado, tanto o santo quanto o padre, em fazerem esta afirmação. Agora, ousadia das ousadias, o evangelho de hoje diz, por uma analogia, a mesma coisa: “Em verdade vos digo, se ele a encontrar [a ovelha que se perdeu], ficará mais feliz com ela, do que com as noventa e nove que não se perderam.” (Mt 8, 13)

Este elogio ao pecado pode dar margem a concluir alguma coisa do tipo “eba, então vamos pecar!!!”, o que seria uma conclusão racional, mas só assim, fora de contexto.
Muito mais do que elogiar o pecado, esta passagem (e também a afirmação do santo) demonstram a confiança em Deus que muitos cristãos hoje em dia não tem: ao constatarem pecados (num recorte que exclui a maioria destes e inclui outros minuciosamente selecionados, como a homossexualidade e o aborto – uma seleção que me parece não se fundamentar em um zelo por Deus, mas em alguma outra coisa); enfim, ao constatarem pecados sendo cometidos em escala industrial, se desesperam com a depravação, com o assassinato dos inocentes, com o quão afastadas as pessoas estão de Deus, e então promovem uma cruzada verbal contra os pecadores que, se parassem para pensar direito, veriam que não serve para nada (olha aí os muçulmanos muito bem instalados nas suas terras, instalados inclusive em Jerusalém, depois de matarem e morrerem para expulsá-los séculos atrás – e, diga-se de passagem, num comportamento animalesco coerente com o pensamento de séculos atrás, mas não com o atual).
Imagine você xingar de coisas horríveis um pecador, ofender ele até não poder mais, e no fim ele dizer “nossa, eu sou mesmo um pecador e você me xingou tanto que eu me converti”. Se fosse o ódio que salvasse as pessoas, Cristo não teria morrido na Cruz, mas destilado ódio santo em textões no Facebook. Seria também parecido com Cristo pedir às noventa e nove ovelhas restantes que berrassem “mééééé!!!” bem alto até a ovelha perdida voltar, ao invés de ter feito como fez o dono das cem ovelhas: ido pessoalmente procurar a perdida.
Mas muitos cristãos fazem isto, cruzadas de xingamentos e mééééé’s chiliquentos, por falta de fé, ou melhor, pelo desespero causado pela falta de fé no Deus em nome do qual estão xingando e chilicando.

A ovelha perdida poderia ser muito bem retratada com um olhar malvado, um cigarro na boca, uma faca sangrenta numa das mãos, alguma depravação moral na outra e uma camiseta escrita “a ovelha perdida”.
Neste quadro hipotético (ah, se eu fosse um artista) haveria uma outra ovelha de gravata, bem arrumada, talvez até com uma Bíblia Sagrada numa das mãos e a outra aberta em um gesto de interromper Cristo que fala com ela, que também usaria uma camiseta escrita “uma das noventa e nove que não se perderam”. Por uma janela em um dos cantos do quadro (ambientado em um bar, porque eu não preciso ser um artista para ser um clichê sem talentos) daria para ver as outras noventa e oito pastando tranquilas, nem perdidas nem desnecessitadas de salvação.

O grande perigo das ovelhas perdidas é estarem perdidas, o que é óbvio, mas demonstra que com as ovelhas perdidas tudo está muito claro: elas estão perdidas, e Cristo vai atrás delas.
Mas o perigo das noventa e nove que não se perderam é julgar que também não precisam ser encontradas. São cidadãs de bem, trabalham, não roubam e nem matam (embora talvez gostassem de andar armadas para se proteger das outras, perdidas), vão a igreja todo domingo e talvez só lhes falte “ganhar um fuscão no juízo final e diploma de bem comportado” (Gonzaguinha) para completarem o seu checklist.
Qualquer semelhança do cidadão de bem com o fariseu que dava graças a Deus por não ser ladrão, corrupto, adúltero, nem ser como o publicano que dividia o espaço com ele que jejuava duas vezes por semana e dava o dízimo de tudo o que ganhava … (cf. 18, 11-12); enfim, qualquer semelhança entre o cidadão de bem e o fariseu não é mera coincidência.

Cristo não quer que pequemos (assim como não o querem o padre e o santo mencionados no primeiro parágrafo), e por isto vai atrás dos pecadores – não como um cruzado disposto a eliminar o pecado junto com o pecador, mas apenas para oferecer o seu amor.
Mas o que um Cristo manso e humilde de coração poderá fazer por um pecador que não precisa de salvação porque já se julga um santo?, um santo que se atribui uma licença 007, porque quem odeia o outro é um homicida (cf. 1Jo 3,15), mesmo que o deixe vivo, e quem chama o outro de louco – ou de idiota, em algumas traduções da Bíblia – vai pro inferno (cf. Mt 5,22).

Cristo vem oferecer a salvação ao cidadão de bem e à ovelha perdida, mas acho que deve ser mais fácil de lidar com o “não quero” da ovelha perdida do que com o “não preciso” daquela que não se perdeu.

segunda-feira da segunda semana do Advento

Primeiro alguém lhe ofende. Ainda não importa se era uma ofensa ou seu capricho, mas sim ter sentido a ofensa. Então você odeia, o que é muito natural. Aí você pode perdoar ou condenar quem lhe ofendeu.

Mesmo que ninguém execute a sua condenação, ela lhe dá uma sensação de justificação – e então você é, pelo que lhe diz seu coração, uma pessoa justa. E assim o dia foi salvo pelo ódio, porque a condenação é a salvação do ódio.

Os fariseus e escribas que se ofenderam com o perdão concedido por Jesus seguiram por outro caminho: eles se sentiam justos por cumprir a Lei, e faziam isto às custas de muito sofrimento. Então vem Cristo e perdoa fácil fácil um zé-ninguém paralítico içado numa maca telhado abaixo. Ele nem teve que se esforçar, foram seus amigos que o trouxeram, carregaram-no telhado acima e o baixaram até onde Cristo estava. O zelo deles não era pela usurpação das prerrogativas de Deus (pois julgavam que Cristo não era Deus), mas sim pela facilidade com que o paralítico obteve aquilo que eles se esforçam tanto para nunca precisar: o perdão de Deus. Eles condenavam – mesmo que não executassem a condenação – porque estavam eles próprios acima de qualquer condenação. Tanto é que condenaram Cristo.

A auto-justificação que temos hoje em dia não se baseia na Lei. Mas o resultado é o mesmo: enquanto os escribas e fariseus justificavam-se pelo cumprimento da Lei, nós nos justificamos pelo ódio, porque é ele que sustenta a condenação. E é assim que ele se salva pela condenação do outro.
Mas este ódio precisa ser alimentado, pois se ele desaparecer, a condenação também desaparece, e a auto-justificação se baseia nesta condenação. E o alimento do ódio é a ofensa.

Será que temos condições de condenar até mesmo os condenáveis escribas e fariseus? Mesmo que façamos do ódio uma nova lei?

Mas voltemos àquele “você” hipotético dos dois primeiros parágrafos (que, portanto, não se referiam a você, e sim a um “você” hipotético que pode ser qualquer um mas é óbvio que não é necessariamente você). Você decidiu perdoar ao invés de condenar.

Isto não impede que você tenha sentido o natural e aceitável ódio pela ofensa sofrida. Porém o perdão dissipa o ódio, porque este perdão é uma espécie de “deixa prá lá”. Aqui surge um perigo: o “deixa prá lá” pode permitir que o ofensor continue lhe ofendendo ou então ofenda os outros.
É urgente não confundir “deixa prá lá o ódio” com o “deixa prá lá a ofensa”. Se esta confusão acontece, o perdão vira um passe-livre para a ofensa e o ofensor vai se sentir à vontade fazendo isto.
O perdão implica tanto em deixar prá lá o ódio quanto em combater a ofensa. Sem combater a ofensa, o perdão tem o mesmo resultado que o ódio, só que neste caso o justificado é o ofensor.

Então temos a conservação do ódio condenador em benefício da auto-justificação; temos um tipo de perdão cúmplice do ofensor; e o perdão que “não esquece o que lhe fazem” (citando um trecho da música Mal Necessário de Ney Matogrosso). É necessário (não necessariamente um mal) não esquecer o que lhe fazem. E observe que o ódio também conserva a ofensa.

O ódio às vezes pode não estar servindo para a auto-justificação, pois a obstinação do ódio em manter a memória da ofensa, embora seja para se alimentar desta memória, é um meio de conservar a ofensa e assim poder combatê-la. Mas este ódio inevitavelmente fará de quem odeia alguém auto-justificado, porque a auto-justificação é amparada pela condenação, que conserva o ódio, que conserva a ofensa.

Cristo perdoou o paralítico mas não disse, como no caso dos dois cegos que imploravam a piedade de Cristo, “a tua fé te salvou”. No caso do paralítico ele disse apenas “teus pecados estão perdoados”. Se o paralítico se salvou ou não não vem ao caso. O que vem ao caso é o perdão gratuito de Cristo – pois o paralítico não fez nada para obter o perdão (o que revoltou os fariseus e escribas), ele nem mesmo pediu perdão, aliás, ele não fez absolutamente nada antes de Cristo mandar que ele pegasse a cama e andasse.
É este perdão de Cristo – gratuito e incondicional – que tanto dissipa o ódio quanto conserva a ofensa sem conservar junto o ódio.

Perdoamos os outros porque Cristo nos perdoou e ainda assim podemos nos insurgir contra a perpetuação da ofensa. Quando o perdão se limita a deixar prá lá, o perdão perpetua a ofensa, e quando se insurge contra a ofensa sem perdoar, se alimenta o ódio que também é uma ofensa, quer ele ajude a destruir a outra ofensa, quer não.

Isto talvez explique a escalada de ódio sem precedentes nos tempos que correm hoje: entre a cumplicidade e a auto-justificação farisaica, não é tão fácil perceber que a solução é o perdão.

Domingo da segunda semana do Advento (solenidade da Imaculada Conceição de Maria)

A Igreja transmite fielmente a verdade e quem lhe dá esta fé (no sentido mais comum do termo, neste caso) pode dizer, com segurança, que Maria foi concebida sem pecado – não por suas virtudes, que de qualquer modo seriam maiores do que as nossas até se tivesse sido concebida com o pecado original, mas pela gratuita bondade da decisão de Deus.

Porque Deus fez assim com ela e não com todo mundo ou, ao menos, com alguns? A Igreja explica que, como ela iria conceber o Filho de Deus, convinha que Maria fosse Imaculada, dada a singular intimidade que só ela teve com Cristo – concebê-lo e levá-lo nas entranhas do seu corpo durante mais ou menos nove meses e depois alimentá-lo com o leite fluído do seu corpo.
Se Maria não concebeu – obviamente – a divindade de Cristo, ainda assim ela concebeu o corpo humano de Deus; dizendo o mesmo em outras palavras: ela forneceu a matéria humana que formou cada célula do corpo do Filho Único de Deus.
É claro que Deus poderia ter encontrado outras alternativas, como “isolar” o pecado de cada um dos componentes fornecidos pelo corpo de Maria, neste exemplo, contaminado pelo pecado original; poderia ter implantado já um feto santo protegido do pecado da mãe; poderia ter feito surgir o bebê já formado no quarto ao lado; etc.; mas levar as suposições sobre o poder divino por estes caminhos seria o mesmo que ficar se perguntando porque Deus não fez os besouros com um membro extra no seu casco para poderem se desvirar quando caem de mau jeito, ou uma atmosfera mais amigável (pro ser humano) à Lua e à Marte para facilitar a exploração espacial e, em última instância, poderíamos questionar porque Deus permitiu o pecado original, quando poderia ter dado à árvore uma proteção mais eficiente do que a frágil confiança no bom uso da liberdade de Adão e Eva.
Só que levar o pensamento por estas águas hipotéticas é tão interessante e útil quanto discutir, como escreveu Luís Fernando Veríssimo, quantos anjos podem se equilibrar ao mesmo tempo na ponta de uma agulha.

Dando fé à Igreja, pode-se comparar Maria com Adão e Eva no que diz respeito à obediência a Deus: concebidos qual Maria sem pecado original, Adão e Eva disseram não a Deus; Maria, nas mesmas condições disse “sim”. E, guardadas as diferenças entre as personagens, comprometer-se com uma gravidez é mais complicado do que comprometer-se com a abstinência de uma coisa que nunca havia sido provada.

Então o significado deste dogma – a Imaculada Conceição – tem mais a ver com conceber uma nova perspectiva, agora positiva, sobre a humanidade, do que conceber um roubo à redenção de Cristo. Até porque uma redenção prévia ao ato redentor é uma ideia mais elegante do que uma confusa ideia de Deus agindo como um manipulador genético no ventre de Maria.

A navalha que Ockham sugeriu à ciência parece já ter sido largamente utilizada por Deus nos milagres narrados ao longo dos quatro evangelhos: quando poderia ter dividido as águas, Cristo preferiu caminhar sobre elas; quando podia ter feito chover mais Maná no deserto, ele preferiu multiplicar os pães que já tinha; até mesmo o imposto, cujo milagre da eliminação muita gente sonha hoje em dia, Cristo preferiu pagar com a ajuda de Pedro, de um peixe e de um discreto milagre do que não pagá-lo milagrosamente – e mesmo deixando claro que era injusto, sujeitou-se à injustiça.

A Imaculada Conceição de Maria que a Igreja celebra hoje não tem a intenção de ser uma festa da idolatria, mas sim de celebrar, por um dogma, a restituição da confiança de Deus na humanidade. Não que Deus dependesse de Maria para confiar, mas nós dependemos deste tipo de sinal para descobrir a renovada confiança de Deus no ser humano – restituída, portanto, pelas ações de uma mulher tão gente como a gente quanto Maria.

Sábado da primeira semana do Advento

O particular deve servir ao coletivo tanto quanto o coletivo deve servir ao particular. E vice-versa.
Isto não significa que indivíduos inúteis devam ser eliminados ou excluídos, nem que as coisas públicas que não me afetam devam ser ignoradas ou encerradas.
Mas significa que os outros valem tanto quanto eu (no caso de um ego inflado) e que eu valho tanto quanto os outros (no caso de falta de autoestima).

Cristo olha para as multidões cansadas e se sente insuficiente para dar conta de toda a demanda delas. Em seguida apela para que peçam “ao dono da messe que envie trabalhadores para a sua colheita” (Mt 9,38) e escolhe doze discípulos para trabalhar em prol das multidões.
E hoje faltam padres, faltam freiras, falta tudo – mas não é porque faltem trabalhadores para a colheita. Pois observando atentamente em volta, há muita gente trabalhando, e não é difícil imaginar quantos mais estão trabalhando fora das nossas vistas.
Cristo, o Filho de Deus, já teve o seu pedido atendido assim que o formulou (pois ele não esperou muitos capítulos para escolher os Doze depois de pedir por mais trabalhadores ao dono da messe). E o dono da messe continua mandando levas e mais levas de trabalhadores. Mas o que eles fazem? Onde estão eles?
Eles estão aí, cultivando as suas colheitas, trabalhando seus terreninhos, vendendo aquilo que colhem, cidadãos exemplares cuidando das suas vidas sem incomodar absolutamente ninguém.
Enquanto isto, a colheita dos outros, ou melhor, de um Outro em particular, continua imensa e mal povoada de trabalhadores.

Não faltam trabalhadores. Falta apenas que que eles olhem para Cristo e vejam, nos olhos dele, a compaixão pelas multidões cansadas e abatidas – aliás, tão cansadas e abatidas quanto eles.

Sexta-feira da primeira semana do Advento

A fé é uma questão muito intrigante. Para além da Teologia da Prosperidade e d’O Segredo, temos Jesus perguntando nos evangelhos, como neste de hoje, se a pessoa que lhe pede um milagre acredita que Cristo pode fazê-lo.

A resposta sempre é sim, e eis a cura.

Porém não aparecem, nos quatro evangelhos, casos de quem tenha pedido, ouvido a pergunta e respondido “não”, ou de quem tenha respondido “sim” e ouvido de volta “mas eu não posso” – o que acontece muito em nossas vidas. Pois muitas pessoas pedem muitas coisas, e elas não vem.

Muitas vezes vem, mas demoram, ou vem de um jeito inimaginável – mas quantos desejos e pedidos já foram negados por Deus?

Uma das explicações mais correntes à pergunta de Cristo é que ele concede o que se deseja a quem acredita no poder de Deus: “vós acreditais que eu posso fazer isso?” (Mt 9,28).

Sim, Deus pode, pode isso e muito mais (basta ver o mundo criado, o ser humano salvo na Cruz, a Ressurreição de Cristo, etc.) Quem duvidaria do poder de Deus?
Então esta é uma boa explicação, muito correta.

Mas, além disto, o “eu posso?” talvez tenha também um sentido parecido com “será que isso convém?” ou “será que está correto isto que você está me pedindo?”
Se pedirmos ao dono dos anúncios do tipo “trago a pessoa amada em três dias”, ele não vai perguntar se isso é correto, se pedirmos “um carro do ano e muito dinheiro” também não – ora, ou talvez pergunte, sim!; talvez até mesmo se negue a fazer algo que julgue errado. Mas Cristo sempre pergunta, em todos os casos, em todas as vezes – a nós, hoje em dia, quando lhe pedimos algo: “vós acreditais que eu posso fazer isso?”

Deus tem poder para realizar os nossos desejos mais extravagantes, mas será mesmo que ele pode, por exemplo, se ocupar mais em providenciar férias na Disney do que em providenciar comida para os esfomeados?
Não é porque Deus tem o poder que ele pode, ou melhor, não é porque Deus tem o poder que nós podemos presumir que ele pode tudo o que queremos. Ele pode o que quer, e o que ele quer é o melhor. Por isto que o que ele não pode, não é porque está além da sua capacidade, mas é porque o que pedimos está aquém do melhor que ele pode oferecer.

Por isto sempre convém, junto com o pedido, perguntar-se “será que Deus pode fazer isto?” não como dúvida do poder de Deus, e sim para verificar se o pedido está em conformidade com a vontade de Deus.

Quinta-feira da primeira semana do Advento

Ghandi e Sócrates são dois personagens que ilustram, do ponto de vista cristão, a ação de Deus que ultrapassa quaisquer fronteiras visíveis da Igreja: um pacifista e um sábio politeístas, cujas vidas e ideias testemunham princípios e valores que coincidem muito com princípios e valores cristãos. Pagãos que, apesar disto, podem facilmente ser chamados de “cristãos na prática” – pelo menos para efeitos ilustrativos.

Aí lemos no evangelho de hoje que “quem ouve estas minhas palavras [as de Cristo] e as põe em prática é como um homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha.” (Mt 7,24) e imaginamos que pessoas como Ghandi e Sócrates construíram suas casas sobre a rocha. E poderíamos pensar que basta ser gente boa e corajosa como os dois grandes nomes.

Mas sem desmerecê-los e nem à ação invisível de Deus fora dos limites (visíveis) da Igreja, nobres pessoas cuja prática coincida com as palavras de Cristo podem até servir, entre outras funções, como um puxão de orelha aos cristãos (“tem pagão que é mais cristão que os que vão à igreja!!!!”), mas não são fontes de inspiração para os cristãos.

Pois neste evangelho, em que Cristo pede que traduzamos suas palavras em prática, ele também pede, indiretamente, que o ouçamos antes de praticá-las.

Ele exemplifica duas situações que ilustram o significado das relações entre ouvir e praticar: na primeira, quem ouve suas palavras e as pratica foi identificado com quem construiu sua casa sobre a rocha, um fundamento firme e estável, enquanto que quem ouve sem praticar se identifica com quem construiu sua casa sobre a areia, que não sustenta nem um puxão mais forte.

Muitas vezes podemos concluir que a fé em Deus resulta – ou deve resultar – em uma prática cristã, o que é uma conclusão correta, mas parece que aqui aparece um elemento novo nesta relação entre fé (as palavras de Cristo) e prática: está fundamenta aquela. Então este “sistema” fé-prática parece se estruturar como a fé sendo a precursora de uma determinada prática, e uma prática que estabiliza e sustenta a fé.

A prática das palavras de Cristo é mais do que um resultado, uma consequência: ela é também os muros da cidade fortificada mencionada por Isaías (Is 26,1) que protegem a fé. Se é verdade que a fé é mais importante que a prática, também é verdade que sem a prática a fé se esvai como a casa construída sobre a areia.

Pessoas como Ghandi e Sócrates podem até estar sobre uma rocha mais firme do que muitos cristãos, mas é como se vivessem sobre esta rocha à mercê do tempo, desabrigados sobre um firme piso nú sem sentido. Entre eles e aqueles que dizem “Senhor, Senhor” mas não praticam o que Cristo disse, devem se posicionar os cristãos, lembrando-se de fundamentar bem a sua fé com a prática – e também de oferecerem a casa que são as palavras de Cristo, tanto aos que vivem sobre uma rocha nua, quanto aos que vivem sobre a areia, abrigados ou não.

Quarta-feira da primeira semana do Advento

Os sentimentos se parecem com água e comida em muitas coisas.

Eles podem ser deliciosos ou asquerosos, além de poderem ser, os mesmos sentimentos, asquerosos para uns, deliciosos para outros e vice-versa.
O gosto ou o asco por determinado sentimento também pode mudar com o tempo, com o qual também a sua posição na nossa hierarquia de gostos pode mudar.
Sentimentos artificiais, com aroma “idêntico ao original”, podem diminuir nossa sensibilidade ao sabor original.
Os conservantes e os aditivos químicos podem também nos deixar incapazes de sentir o sentimento em si e reorientar o paladar do nosso coração para os próprios artifícios de sabor.
Às vezes um sentimento pode ser delicioso e fazer mal à saúde, ou pode ser intragável mas ser um verdadeiro remédio. Em qualquer caso, pode ser que faça mal em excesso e também faça mal se for muito pouco.
Alguns sentimentos podem realçar ou esconder o sabor de outros sentimentos, como o sal e o açúcar fazem com alguma comida ou bebida ruins de ingerir. E assim como o sal e o açúcar, podem substituir todo o resto nas nossas preferências, tornando-se desejos obsessivos, sem contar que a intensidade frequente de um sentimento pode fazer com que se torne quase impossível perceber o mesmo sentimento se apresentando de forma mais sutil e, eventualmente, mais saudável (como o excesso de açúcar dificulta a percepção da doçura cálida de uma cenoura, por exemplo).
Há sentimentos bons porém perigosos como alguns frutos-do-mar, e sentimentos enganosos como refrigerantes. Há também sentimentos embriagantes como bebidas alcoólicas e, assim como elas, alguns convém não misturar.
Sentimentos que estragam e apodrecem com o tempo; sentimentos que dão mais trabalho do que outros; sentimentos industrializados e orgânicos; sentimentos que uma Bella Gil das emoções poderia sugerir ser substituídos por outros e sentimentos rotineiros que nem se percebe mas cuja falta é muito sentida quando não tem. 
E assim como a água e a comida, eles acabam. Deixam lembranças que não alimentam mas são agradáveis. Alguns deixam lembranças horríveis.
Mas, também como a água e a comida, eles voltam, embora alguns os tenham em demasia e a outros reste a escassez.
Há muitos pobres em sentimentos. E ricos acumuladores emocionais que poderiam dividir o que tem.
Em tudo isto Cristo está presente, mas aqui, na escassez (que pode ser de sentimentos em geral, mas também pode ser de algum sentimento em particular, ainda que o coração esteja abarrotado de outros sentimentos), Cristo entra com maior urgência, pois quem multiplicou sete pães e alguns peixinhos (cf. Mt 15,34), também pode saciar a fome do nosso coração.

Primeiro domingo do Advento de 2019

Nem toda a gambiarra é pecado, mas todo pecado é uma gambiarra. Adão e Eva, que não conheciam a morte, arriscaram facilmente a vida eterna em troca de uma fake news – a serpente disse a verdade sobre o conhecimento que daria comer o tal fruto proibido, e diante desta expectativa, radiosa como como a visão do fruto, foi fácil ignorar a parte do  “oh, não morreireis” (Gn 3,4), pois Deus disse a verdade, e a serpente, a mentira seguida de uma constatação verdadeira e inegável. A acusação mais ou menos frequente contra Deus, de que sonegou um conhecimento e por isso foi bem-feito que a serpente corrigiu esta sonegação é deste tipo de meia-verdade, aliás; pois Deus não sonegou o conhecimento quando permitiu que eles comessem tudo o que houvesse no Jardim do Éden nem escondeu a existência da árvore-do-conhecimento-do-bem-e-do-mal, mas só pediu que ninguém comesse do seu fruto. A gambiarra foi Adão e Eva julgarem que a serpente deveria ter razão sobre a morte, pois tinha razão sobre a expectativa de conhecimento contida no tal fruto.
A polarização política atual é apontada como um problema sério etc., mas é outra meia verdade do tipo “oh, não morrereis”, pois encobre sistematicamente o ódio vivido como “ódio verdadeiro justificado” direcionado contra o outro polo, seja qual for este polo. O surto de histeria coletiva atual é fruto apenas do ódio, e não da polarização – embora o problema não seja o ódio pura e simplesmente, mas um ódio sistemático, explorado na divulgação de ideias que certamente farão o outro lado sentir muito ódio (seja o elogio ao AI-5, seja o empoderamento das minorias, por exemplo).
O retorno de Cristo, imprevisível como um assalto, é negado de duas maneiras: uma é não contar com a possibilidade deste retorno ou, igualmente, colocá-la muito no futuro, e a outra, colocando-a no presente.
Se Cristo não voltará ou se voltará daqui a 200 anos, então não há problema em ignorá-lo; e se Cristo voltará amanhã ou dentro de cinco minutos, também não há problema em ignorá-lo, pois não adianta fazer mais nada.
A verdade é que “na hora em que menos pensais, o Filho do Homem virá” (Mt 24, 44) e, portanto, o conhecimento do futuro, negado por Deus, é transformado em previsões de inovadoras ditaduras das minorias ou de reedições de velhas ditaduras.
Se Cristo estivesse a caminho, a uma distância indeterminada, seria mais lógico promover o bem que ele traz consigo. Mas como Cristo não vem ou já chegou  e a maioria ainda não viu – uma gambiarra em forma de crença – todo o ódio aparenta a leveza de uma inconsequência inócua: já que afinal conhecemos o bem e o mal, podemos impor o primeiro e combater o segundo, seja porque Cristo vai demorar, seja porque já não há amanhã.
Entre o imprevisto retorno e o improviso do ódio, ceder ao medo é tomar partido da serpente das meias-verdades reeditadas como as fake news “de que tanto tem se ocupado a imprensa” (O Circo Místico).

Lc 16,1-8

O cristianismo é uma religião em nome da qual já se fez muitas coisas boas e más (inclusive coisas suspeitas, que ainda não temos como saber se foram boas ou más).
Por isto mesmo é necessária a conversão do coração, que depende da interação entre Deus e o coração humano, pois sem isto até mesmo o “amai-vos uns aos outros” pode se traduzir em uma maldade.
Se até mesmo as mensagens mais explícitas (“amai-vos…”) podem ser usadas para o mal, o que dirá Lc 16,1-8!
Um administrador desonesto (nas palavras de hoje: corrupto) é descoberto, ganha um aviso-prévio, e aproveita este tempo de aviso prévio para roubar ainda mais o patrão bajulando os credores dele. E o patrão ainda aplaude.
Jesus Cristo enlouqueceu nesta passagem! Ou Lucas esqueceu de acrescentar alguma coisa: uma reprimenda de Cristo ao administrador, uma recomendação de que não ajamos como ele, qualquer coisa!! Mas não, tudo o que Cristo tem a dizer é que os filhos deste mundo são mais prudentes no trato com seus semelhantes do que os filhos da luz.
Mas talvez a ideia seja ressaltar a predominância do bem. O administrador desonesto não deve ter conseguido muita coisa com a sua desonestidade, pois o patrão descobriu até este último ato (se o patrão elogiou a esperteza do administrador é porque deve ter descoberto, e embora talvez tenha deixado prá lá a fraude, porque teria demitido o administrador pra começar?)
Cristo não está dizendo “roube para fazer caridade com o dinheiro roubado”, mas sim “trate bem os outros”. A desonestidade do administrador fez mal a ele mesmo e fez bem aos outros.
Como mais adiante Cristo vai dizer que quem é infiel no pouco também será infiel no muito, pode-se supor que se um um bem resultante de um mal é elogiável, quanto melhor será um bem resultante de um bem.
Então o bem predomina, porque Deus é maior e mais forte do que o mal. Mas a máxima de que os fins não justificam os meios ainda vale: usar meios maus para resultar em um bem dá no mesmo que colocar barreiras à ação de Deus, o que não vai impedir Deus de usar até o mal para fazer resultar dele um bem, mas quem põe as barreiras arrisca o próprio pescoço. Agir contra Deus não vai impedir Deus mas vai prejudicar quem antagoniza Deus; agir a favor de Deus também não vai impedir Deus (é óbvio) mas vai ser benéfico para quem o ajuda: se até do mal Deus tira coisas boas, o que dirá do bem!
Não é necessário fazer o mal para tratar bem os outros. Mas se é possível fazer o bem com destrato (uma esmola dada de cara feia, por exemplo), o bem vai ficar ainda melhor feito com bom-trato.
(E eu tenho que voltar às aulas de português para relembrar as sutis diferenças entre bem e bom e entre mal e mau).

Lc 14, 25-33

É possível dizer alguma coisa desta passagem do Evangelho além do que Cristo já disse, que é necessário o desapego a tudo aquilo que não seja o próprio Cristo para poder segui-lo?

Talvez menos importante seja uma reflexão sobre os dois exemplos de renúncia, do operário da torre e do rei ante uma ameaça de guerra.

Ambos estão a um passo do desconhecido: a torre não existe ainda, é só um projeto, e a guerra ainda não começou, embora o exército adversário já se aproxime. Diante dos dois há duas possibilidades: o sucesso e o fracasso. E eles têm a expectativa de sucesso, seja ver a torre construída, seja ver o exército inimigo derrotado.

Esta expectativa é posta em dúvida e ela que poderia ser ignorada por uma visão estreita ou pelo desejo imoderado de sucesso. Tal ignorância é um apego cego às próprias metas e objetivos no caso do operário e à vitória no caso rei.

Cristo aponta a necessidade de que os.dois verifiquem as condições de suas iniciativas para se certificarem de que não serão frustrados, pelo menos, por algo que poderia ter sido previsto se tivessem parado para refletir por um momento antes de se jogar à ação.

O operário da torre precisa considerar a possibilidade de não vê-la construída, talvez não agora, talvez nunca. O rei precisa considerar a possibilidade de não vencer e garantir a paz pela negociação diplomática. Os dois casos implicam renunciar aos projetos e objetivos muito importantes em prol de algo ainda mais.importante: a paz que vale mais.do que a vitória, e a aceitação dos próprios limites diante da falsa autosuficiencia.

O grande impasse em que este trecho do Evangelho nos coloca é: “mas como renunciar à família e à vida se ambas são importantes???” – lembrando que a própria Igreja ensina que a família e a vida são um projeto de Deus.

Estaríamos dentro de uma armadilha se não fosse Cristo. Pois estes – e todos os outros – projetos são pautados por Deus, e nós que tocamos estes projetos precisamos fazer isto seguindo Jesus e não os nossos narizes.

Aquilo de que nos desapegamos para seguir Jesus pode ser bom ou mau (e é bom no caso da família e da vida), e se nos apegamos em primeiro lugar a Cristo (“buscai primeiro o Reino de Deus”) isso não significa jogar todo o resto no lixo. Significa, sim, relacionar-se com tudo (inclusive com a família e a própria vida) conforme as condições desejadas por Deus, e não conforme nossos próprios juízos e convicções.

Ressignificar tudo partindo de Deus implica em abandonar os próprios.valores e isto dói, mas valorizar as coisas a partir desta ressignificação fará delas o que sem Deus não poderíamos fazer: torná-las coisas divinas sem que deixem de ser, ao mesmo tempo, humanas.