Santo é o seu nome

O Cântico de Maria tem ecos das maravilhas que Deus fez com Elias no monte Carmelo, em todo o AT, e ecoa, por sua vez, em cada uma das maravilhas que Deus faz por nós cotidianamente.

Maria, concebida sem pecado, é a Mãe de Deus, Nossa Senhora de várias coisas, rainha dos apóstolos e etc., enquanto que Elias (que tornou o monte Carmelo famoso a ponto de atrair os eremitas que muito tempo depois formariam a Ordem Carmelita) tem um peso tão grande a ponto de a profecia da vinda do messias incluir o retorno do profeta.

Mas não foi a imensidão da fé e da santidade de Maria nem de Elias que provocou as maravilhas de Deus – apesar de a fé e a santidade serem, por si só, maravilhas de Deus também.

Deus faz maravilhas porque seu nome é santo, e é pelo seu próprio nome e pela própria santidade que elas são feitas.

Entre nós certamente somos alguns mais dignos, outros menos, alguns mais esforçados e outros menos, enfim, há diferenças entre nós em relação à dedicação a Deus.

Mas o amor – a maior maravilha de Deus – por nós depende apenas dele, que é muito maior do que as nossas maiores barreiras a este amor (o que não deve estimular nossas barreiras, e sim a ver este amor ultrapassando-as).

Assim como todas as suas outras maravilhas, operadas em nós porque “santo é o seu nome”.

É a paz que ele vai anunciar.


Anúncios não são novidade: os preços mais baixos, as melhores relações de custo X benefício, promoções-relâmpago, ganhe dinheiro sem sair de casa, etc. Há também declarações sobre a orientação sexual de alguém famoso, denúncias de crimes, continuações de filmes, compra e venda de grandes empresas, sem contar os anúncios menos divulgados porque não são da conta do grande público.

Em meio a tantos anúncios, o salmo deixa a expectativa de um anúncio de Deus: a paz.

Este anúncio já foi feito, com Cristo, que veio anunciar a paz. Mas ele não só já foi feito, como continua a sê-lo. Cristo é o fiador da paz que vemos em pequenas notícias cotidianas que quase nunca se tornam grandes manchetes nos jornais, e em pequenos fatos que podem parecer nem merecer ser anunciados.

E mesmo já tendo anunciado, e prosseguir anunciando-a, Deus ainda irá anunciar a paz. Definitivamente.

Este anúncio, e esta paz, são obra de Deus, e não nossa. Mas mesmo que ele a promova e realize de qualquer jeito, faz diferença para nós participarmos disto ou não. Deus não deixa de fazer o que ele quer fazer, e convida todos a participarem, só que não obriga ninguém.

E quando a paz for anunciada, quem promove a guerra e o conflito deixará o que sempre fez de lado em prol do anúncio de Deus? Melhor que sim, mas no calor do combate estes gladiadores vão interromper seus golpes no meio da execução, abrir mão da vantagem recém-adquirida no meio da luta, ou deixar passar em branco os golpes que sofreram? Haja força de vontade!

Quem já promove a paz – a paz de Deus, e não a paz do silêncio cúmplice, do cemitérios ou da alienação – terá que lidar somente com a surpresa, pois assim como a paz de Cristo surpreende desde a sua crucificação, morte e ressurreição, a paz que ele irá anunciar está além de qualquer coisa que já tenhamos conhecido ou que possamos ter imaginado.

Sutil Providência

Um detalhe que sempre me intrigou ao longo dos quatro evangelhos é que depois da maioria dos milagres Cristo recomenda que eles não sejam divulgados, como no evangelho de hoje (Mc 5, 21-43).

E eu ficava divagando “mas porquê?”, “será que os que não ouviram esta recomendação pecaram?”, “e como faz com a parte que diz que é pra divulgar o bem que Deus fez?”, entre outras divagações deste tipo (aliás, não é à toa que o nome deste blog é Divagar Divagarinho).

Agora tenho uma ideia sobre qual pode ser o motivo. Queria que pegassem o meu salário proporcionalmente ao tanto de ideias que eu tenho, aliás.

Sobre os milagres, acho que Cristo não quer que as pessoas misturem as coisas: ele não é um milagreiro e não veio para salvar o mundo através da prestidigitação nem com efeitos especiais. Tendo feito milagres, os fez como sinais quando surgiu uma oportunidade de agregar ao sinal um benefício prático concreto a alguém.

Isto me faz desconfiar muito de qualquer milagreiro por aí. Não que eu duvide dos milagres que eles fazem. Mas desconfio da integridade do milagreiro quando ele precisa propagar os seus milagres, oferencendo-os como prova de que merece fé.

Isto, esta fé fundamentada em provas, descaracteriza a própria fé (pois ela não é um teorema, nem uma função científica, nem um caso jurídico para amparar-se em provas), e até mesmo desvia dela, porque Jesus Cristo veio para nos preceder na ressurreição – depois de ter nos precedido na Cruz.

Dez talentos

A parábola dos dez talentos, narrada em Mt 25, 14-30 e em Lc 19, 11-27; sempre me assustou muito, porque eu sempre me identifiquei com o infeliz que, temendo o patrão muito rigoroso, enterrou o tal talento para evitar problemas.
Eu imagino que tenha feito isto pensando “bom, assim eu não arrisco perder o talento e aí o homem não me xinga”. Mas o patrão reclama que o servo poderia ter ao menos colocado o talento em um banco para render juros.
O meu medo desta parábola estava em me identificar com o medo conservador do servo, que preferiu manter o talentinho recebido do que tentar fazê-lo valer mais sob o risco de perdê-lo – mas ao guardá-lo bem guardado, perdeu-o do mesmo jeito.
Aí eu percebi um dia destes que o problema deste cara não era zelo, mas sim preguiça. O próprio patrão “explica” isto quando diz que o servo poderia ao menos ter colocado o talento em um banco, onde estaria guardado do mesmo jeito que esteve guardado enterrado mas rendendo juros – só que daria um pouco mais de trabalho (não sei como eram os bancos no tempo de Cristo, nem se “banco” é uma tradução feita para entendermos hoje o que na época era parecido, só que não propriamente um banco, mas bancos dão trabalho e são irritantes; imagine ter que conseguir comprovante de residência e ter os documentos bem conservados naquela época, sem contar o nome limpo, ou melhor, o nome imaculado que eles querem que tenha e sem contar as portas giratórias).
Talvez, afinal de contas, o problema do servo não fosse preguiça, e ele fosse só um conservador por convicção, mas com certeza era, a preguiça, a origem do meu medo desta parábola.
O que Cristo quer que façamos com os talentos que ele nos deu, seja individualmente, seja à Igreja, é que arrisquemos. Preguiça, medo ou excesso de zelo não vão servir como boas desculpas, aparentemente.
E o conservadorismo por princípio (acho eu) muito menos!
E se este texto serve para fazer uma cara feia aos conservadores (que parecem pensar que foi o latim que morreu na Cruz por nós), serve para fazer uma cara feia para mim também. Porque se por um lado eu não posso dizer que eu não arrisque, por outro lado, eu faço isto titubeando tanto que pareço o Dobby carregando o invisível Crouch Jr. consigo ao longo do acampamento da final de Quadribol. Ou como se eu arriscasse mas só depois de dez anos de planejamento e documentos carimbados em vinte vias.
Então acho que este era o meu problema, o do servo mau e infiel – e talvez o dos conservadores de hoje em dia: apenas preguiça. E a falta de confiança em Deus que faz frutificar os riscos assumidos, e tem misericórdia de nós quando tentamos e não dá em nada também.

Pelo amor ou pela dor

A frase “pelo amor ou pela dor” chegou até mim como o título de um livro espírita. Eu não sei nem se é mesmo, mas na época as conversas eram de que isto é mesmo verdade: encontraremos o caminho correto, o caminho da luz, o caminho do bem (alô Tim Maia) por bem ou por mal, seja pelo amor, seja pela dor.
Eu, que concordei com essa ideia, hoje descordou dela. A frase que deveria culminar o texto deveria vir no fim mas minha inabilidade literária já traz ela agora: a dor até corrige, mas só o amor ensina.
Estou pensando, por esta frase, em dois eventos mais ou menos paralelos. Um deles é o retorno de Cristo, a segunda e definitiva vinda, utilizada tantas vezes como argumento para as pessoas se corrigirem. Mas acredito que ameaça-las com o Julgamento Final não vai corrigi-las. 
Os pequenos e constantes julgamentos parciais, aos quais todos estamos sujeitos, ajudam (ou podem ajudar), a nos corrigir, mas não ensinam. Se a dor ensinasse alguma coisa, a maldade e a corrupção seriam uma novidade destes tempos em que palmadas em crianças são questionadas e o uso da violência é recriminado em diversas instâncias. Os antigos batiam, e também tiveram seu quinhão de maldade e corrupção – “há tempos nem os santos tem ao certo a medida da maldade” já cantava a Legião.
Quando Cristo prega “convertei-vos porque o Reino de Deus está próximo” é mais a título de informação (“evangelho” significa “boa [nova=] notícia” e uma notícia é uma informação) e de estímulo do que de ameaça. A sempre iminente instauração do Reino definitivo é uma meta, e não uma causa.
A escatologia cristã possui um paralelo laico que é a hecatombe climática: ecologizai-vos porque o colapso ambiental está próximo. E tem o mesmo efeito da segunda vinda de Cristo utilizada como argumento para voltar-se ao bem: pode até corrigir, mas não educa.
O cuidado com a casa comum é um imperativo. A sustentabilidade, a reciclagem, o controle da emissão de poluentes, etc., são necessidades, mas dificilmente serão consequência da ameaça do colapso ambiental.
Assim como é necessária a educação para a preservação do planeta, algo semelhante é necessário ao cristão: além de educação, amor.
A dor é inevitável, mas percorrer o seu caminho é inefetivo. Já o amor, também inevitável, oferece um caminho eventualmente tortuoso, mas nos aproxima mais de Deus do que a dor.

Conversão de S. Paulo

Às vezes eu tenho a impressão de que Paulo foi muito arrogante. Mesmo sabendo que ele tinha a necessidade de defender seu apostolado, não sendo um discípulo “regular” de Cristo como os outros apóstolos, ainda assim esta sensação perdura.
Mas perdura até perceber que Paulo é o protótipo do cristão atual. Não como inúmeros autoproclamados apóstolos da atualidade que defendem sua autoridade fazendo um paralelo ao chamado de Paulo, mas por ser um discípulo assim torto.
Paulo não só não era discípulo, mas era um perseguidor. Não era um sujeito indiferente ao cristianismo, mas um inimigo. E depois de convertido, teve de lidar com situações fora do esperado e teve de tomar decisões heterodoxas também.
Tudo em S. Paulo é uma constante inconstância, e diante desta inconstância, uma luta – não contra os inimigos, não contra os pagãos, não contra os judeus, uma luta contra nada, a não ser – pela preservação da fé.
Claro que ele fundou as comunidades, escreveu cartas que se transformaram em normas, combateu o bom combate etc., exerceu sua autoridade e sua humildade conforme as circunstâncias o exigiram…; mas aquilo no qual nos igualamos a ele hoje em dia é em ter que matar um leão por dia (e às vezes até morrer na boca dele) sem perder a fé, sem perder a esperança e nem a caridade. 
Esta perseverança é graça de Deus, obviamente, seja a de Paulo, seja a nossa. Mas é uma graça que funciona melhor (ou apenas funciona) no sujeito que se esforça, mesmo inutilmente, por manter a fé e todo o resto.
Sabemos que não podemos, como Paulo também o sabia. Mas vemos nele o exemplo de tentar o impossível para que, mesmo impossibilitados por nossas forças, Deus faça frutificar o impossível. 

Pouco com Deus

Colocar o apego ao dinheiro – ou a quaisquer outras posses – acima do bem comum é uma atitude nefasta cuja maldade se manifesta na miséria, no egoísmo e na cultura de morte contemporâneos.

Por outro lado, o bem alheio não se encontra em nossos bolsos necessariamente, ou seja, não dependemos de ter dinheiro para fazer o bem.

Quando os discípulos perguntam a Cristo “Queres que gastemos duzentos denários para comprar pão e dar-lhes de comer?” (Mc 6, 37), ele não diz “é, é isso mesmo! Vamos todo mundo coçando os bolsos.”, nem “não, porque somos maiores do que estas coisas mundanas”, mas apenas pede que alguém vá ver quantos pães tem – e descobrimos que eles tem cinco pães e dois peixes.

Talvez daí que tenha surgido a expressão “o pouco com Deus é muito” (e seu corolário: “o muito sem Deus é nada”), mas esta expressão omite um aspecto fundamental do pouco multiplicado: compartilhar.

Dividir o pouco entre todos não sugere dinheiro, rios de dinheiro, embora supostamente (para a alegria dos defensores do “não existe almoço grátis”) alguém tenha comprado estes pães, e também a rede onde foram pescados os peixes. Mas o que está em jogo é o que se tem para compartilhar, e não o que se poderia ter, e nem mesmo está em jogo o que se deveria ter. A questão é ajudar-se mutuamente com aquilo que se tem.

O milagre da multiplicação dos pães não é um milagre gastronômico e nem econômico: é sim o milagre de, querendo fazer o bem a um grande número de pessoas sem ter tantos recursos para isto, Deus agir para multiplicar o pouco e, assim, dividir o pouco entre muitos 

A impotência do cristianismo

Entre terapias e espiritualidades que prescindem de religião, o cristianismo não tem, eu acho, nenhum tipo de prática ou técnica salvadora para oferecer neste mercado místico contemporâneo.

Mesmo ir à missa, a oração, a leitura e o estudo da Bíblia e os atos de caridade, que por si só são mais do que úteis, necessários; ainda assim são, como todo o resto, coisas úteis e ou necessárias, mas não nos fazem circular por todo o nosso ser, sejam as periferias, seja o centro, como o que o cristianismo nos faz circular.
Até mesmo um pai-nosso ou um almoço doado a quem tem fome, embora não se percam, podem ser fruto de uma satisfação egoísta e não de uma manifestação da caridade de Deus.

O cristianismo exige comprometimento e entrega, coisas que implicam em esforços e renúncias que se, por um lado, não são comportamentos exclusivos do cristianismo (até o ladrão que cava um túnel embaixo do cofre do banco para roubá-lo precisa ter compromisso, precisa se entregar àquela atividade, precisa de esforço e faz renúncias), somente nele encontram um sentido que não os transforme em um sofrimento pelo sofrimento ou.em um masoquismo disfarçado.

O cristianismo exige também atenção, ponderação, um equilíbrio por sermos pecadores lidando com pecadores junto a Deus que é santo; ou seja, é preciso confiar como crianças, mas ser astuto como uma serpente e sem deixar de ser sensível como uma pomba.
Não há dez pai-nossos e cinco ave-marias que bastem para nos transformar, embora sem isto também seja cem vezes mais difícil a salvação.

O que o cristianismo pode oferecer entre curas, prazeres, experiências sensoriais inefáveis e poderes que todos os outros “players” deste mercado oferecem com tanto empenho e desenvoltura? A resposta é nada, e é por causa da única coisa que o cristianismo pode oferecer: Cristo.

Apenas Cristo, e Cristo Crucificado, é o que o cristianismo tem para oferecer ao mundo – e ao mercado místico contemporâneo. E somente Cristo que, no fim das contas, pode nos fazer caminhar em direção à plena realização que sentimos e sabemos ser nosso destino, que somente nele pode ser encontrada. 

Quem me dera

As minhas decisões não são um compêndio da doutrina cristã só porque eu sou católico, nem são um modelo a ser seguido ou, pior, um padrão a ser adotado (!), sejam as decisões ruins, sejam as boas, ou sejam as duvidosas.

Um exemplo de decisão duvidosa que eu tomei foi amar sem ser correspondido. É uma “decisão” meio gaiata, porque no fim das contas eu fiz isto a vida inteira, amar sem ser correspondido, querendo ou não. Portanto a decisão não foi tanto amar sem ser correspondido, mas sim continuar a amar mesmo sem a menor expectativa de que eu venha a ser correspondido (embora mantendo uma esperança inversamente proporcional à expectativa).

Essa correspondência tem aspectos, é claro: a garota que eu gosto já gostou de mim, e se ela não me ama foi porque eu pude viver o ciclo completo do amor fracassado, que consiste em se apaixonar, depois ser correspondido, e depois agir de tal forma a perder a chance. Outro aspecto são as duas crianças, um amor independente, porém intrinsecamente relacionado ao primeiro amor. E há ainda o aspecto do respeito que ela tem. O respeito é uma coisa que pode ser conquistada, mas que no caso dela, da garota que eu amo, vem dela, que me respeita menos por méritos meus e sim mais por ela adotar o respeito como uma prática habitual em todos os casos em que ele seja aplicável.

Eu poderia arranjar outra garota (“poderia” num sentido hipotético e fantástico, já que nas poucas vezes em que “arranjei” uma garota, isto aconteceu em circunstâncias bem peculiares; a maior parte da vida amorosa eu fui o personagem da poesia Timidez, de Cecília Meireles); então, corrigindo, eu poderia encontrar outro amor não correspondido, e roer as unhas à espera do efeito deus ex machina das tais circunstâncias peculiares, mais raras do que diamantes.
Não seria um caminho fácil, porém seria o caminho já conhecido, alargado, aplainado e asfaltado da minha vida amorosa, de cuja estrada eu já conheço os passos que não vão dar em nada, pois seus segredos (e as músicas do Secos e Molhados) sei de cor.
Seria, também, um caminho melhor, muito melhor, do que o descaminho das soluções machistas (pois não é por não praticá-lo que sou isento de machismo), que na melhor das hipóteses resultaria em um rancor eterno e (das duas uma) divã ou mesinha de bar. E eu sei que eu escolheria o bar, porque se eu fosse do tipo que escolheria o divã talvez nem tivesse chegado neste ponto, prá começar.

Melhor sofrer por amor do que lutar contra ele (se não aparecer nada melhor até o fim, este vai ser o título deste texto).

O que restou para ser decidido foi se eu continuaria a amar a garota que eu amo para além do sublime “amai-vos uns aos outros”. A minha decisão foi o resultado de uma adaptação particular do conceito católico de matrimônio (não que o matrimônio se reduza ao seu conceito, mas ao mesmo.tempo ele é, sim, conceituável), que resultou no seguinte:

Primeiro, um casamento sem contrapartidas (uma característica que, na inimaginável – porém desejada – e remota hipótese de ela um dia quem sabe querer casar comigo, seria mantida – não por bondade, mas por estratégia porque até certo ponto eu sei com quem eu estou lidando). Isto consiste em não exigir nada dela que seja, a princípio, irrecusável, ou seja, não considerar nada que eu queira dela como algo irrecusável. Ou, dito de outro modo, ela não é, da minha parte, obrigada a nada, e nem eu me dou o direito de obrigá-la em nome de terceiros (as crianças, Deus ou a Igreja, por exemplo – porque, do contrário, isto daria margem a coisas como “não estou exigindo isto por mim, mas sim por/pela [insira aqui as crianças, Deus ou a Igreja]”).

Depois, um casamento unilateral. Para todos os efeitos, eu sou casado com ela, mas esses efeitos só se aplicam a mim: não ficar com outras pessoas, buscar o bem do outro cônjuge, até gerar filhos é um item que já foi cumprido, atender as demandas dela (as que eu posso, porque eu não cumpro 90% das expectativas dela, eu sei). É claro que eu não saio dizendo por aí que eu sou casado (o que soaria até meio doentio), geralmente a minha resposta à pergunta “mas vocês estão juntos?” é “eu não poderia dizer nem que sim, nem que não”, mas considero ofensivo o status de “enrolados” para este caso. “Nem que sim, nem que não” é uma definição bastante objetiva, apesar de ser complexa, e talvez por isto as pessoas associem com “enrolados”, mas são duas coisas completamente diferentes.

A Igreja não determina o que é um matrimônio (põe limites e encontra nele um sacramento, mas não o determina) e eu me aproveito muito desta indeterminação. “Matrimônio”, aliás, é como “vida”, “homem”, “mulher”, palavras que poderiam substituir “liberdade” no verso “… é uma palavra que não há quem a explique nem ninguém que não entenda”.

Talvez eu possa chamar a minha decisão de “compromisso irrevogável unilateral por motivos religiosos, dado em resposta a uma paixão, sem ser abençoado nem proibido pela Igreja”. Mas pode ser que, pelo contrário, haja uma CID para decisões como esta.

Os limites da arte

A arte certamente tem limites. Como exemplo, pode-se usar uma hipotética obra, digamos uma pintura, que represente um ato sexual pedófilo, que o autor entitule de “O Abuso da Inocência” e explique que serve para alertar contra o mal da pedofilia. O título e a intenção demonstrariam claramente o rechaço do autor e da sua obra ao mal da pedofilia, mas mesmo assim seria uma obra digna de censura, porque nem a liberdade da arte e nem o combate à pedofilia justificariam a exibição do ato, mesmo que apenas representado em um quadro (não que uma eventual releitura do quadro “Saturno devorando um filho”, rebatizado com o mesmo “O Abuso da Inocência” e com as mesmas nobres intenções do exemplo fora dos parêntesis, pudesse ser censurado – o exemplo.fora dos parêntesis era o de uma obra de arte digna de censura, o exemplo dentro destes parêntesis, o de uma obra idêntica àquela, sem no entanto um elemento censurável).

Um exemplo.assim tão extremo serve apenas para demonstrar, ao mesmo tempo, tanto a imensa extensão da liberdade da arte quanto a existência de limites a ela: por mais longínquos que sejam os seus limites, eles existem.

O especial de natal do Porta dos Fundos, que eu não assisti, mereceria censura há, talvez, cinco ou dez anos atrás, pelos mesmos motivos que justificam-na hoje. Mas hoje, em 2019, não cabe esta censura.

O cristianismo já foi um projeto político concretizado no tempo em que a cristandade era, para todos os efeitos, idêntica à sociedade. Depois que a sociedade abandonou o cristianismo como projeto político, a religião passou a ser um aspecto entre outros da sociedade e, embora o cristianismo realmente seja verdade e deva ser ouvido (“convertei-vos e crede no evangelho”), ainda assim a verdade não deve ser imposta – embora Deus imponha a sua vontade na sua atuação discreta e misteriosa, se ele quisesse impor a verdade proclamada pelo cristianismo, não teria instiuído o livre-arbítrio.

Apesar disto, há cinco ou dez anos atrás seria muito justo considerar a censura ao especial de natal do Porta. Porém hoje o cristianismo está sendo usado desfiguradamente por uma porção da sociedade para a promoção de candidatos.

Há uma diferença muito grande entre um candidato identificar-se com o cristianismo e um candidato identificar o cristianismo consigo mesmo. Nem o Papa identifica o cristianismo consigo mesmo, já que ele é o legítimo sucessor de Pedro, e não a Igreja em si.

Candidatos cristãos são falácias, o máximo que pode haver são cristãos candidatos. Até mesmo Judas, mais cristão do que todos nós, porque era um dos Doze Apóstolos, tomou decisões erradas – e as consequências das suas decisões provam que quanto mais alto é o cargo do cristão (pois além de Apóstolo era quem cuidava do das finanças do grupo), piores serão os seus menores erros.

Quando a política “se torna” cristã, ela expõe o cristianismo ao jogo político com todas as características do jogo político, e faz parte deste jogo político a crítica oposicionista, que pode muito bem ser feita em uma obra artística – como um filme do Porta dos Fundos.

O cristianismo tem sua própria política (basta ler a Doutrina Social da Igreja); porém quando “o cristianismo” governa um país, ele é o poder vigente, e o poder vigente é, entre outras coisas, o alvo dos humoristas.

As propostas políticas cristãs podem e devem ser implantadas na sociedade, mas devem ser implantadas de modo a contemplarem toda a sociedade, que não é toda ela cristã, infelizmente.

E este não é o caso deste governo, que evoca o cristianismo e esquece-o conforme lhe convenha, não para trabalhar em prol da implantação de valores cristãos na sociedade, mas sim para satisfazer uma base de apoio – que insiste em adaptar o cristianismo às suas próprias convicções pessoais, ao invés de adaptar as próprias convicções ao cristianismo. Se a maioria da população fosse politeísta, Bolsonaro iria se declarar enviado por Baal com a mesma convicção.

Uma vez que o cristianismo foi reduzido (e desfigurado) a um projeto político, ele se torna alvo dos ataques a que todo e qualquer projeto político está sujeito.

Isto não torna louvável nem menos ofensivo o vídeo do Porta dos Fundos, mas dá a eles o direito de desfigurar as imagens cristãs exatamente do mesmo modo que os políticos cristãos estão fazendo.

Nem todo o direito é santo (como não o é o direito que alguns países tem de executar prisioneiros, por exemplo) e este direito que o Porta dos Fundos possui também não o é – e portanto eu não defendo o direito deles de fazerem o que fizeram. Mas eles – e, diga-se de passagem, qualquer artista – adquirem automaticamente este direito quando os governantes arrogam-se o direito, que também não é santo, de fazerem política com o cristianismo.

Do mesmo modo que um comerciante cristão não comercializa o próprio cristianismo – e se o fizer reduz o cristianismo aos seus negócios, igualmente um político cristão não politiza o próprio cristianismo, pois quando o faz, reduz o cristianismo à sua própria política. Cristianizar a política é necessário, mas politizar o cristianismo é uma blasfêmia maior – e anterior – às obras de arte que usam as imagens cristãs para darem o seu recado.

Questionáveis sugestões

Li – de relance, nem lembro onde, talvez na semana passada – que a Igreja precisa abolir algumas das suas doutrinas para avançar.

Eu, por outro lado, acho o contrário: o que a Igreja precisa é de radicalizar-se nas suas doutrinas para avançar.

Se a Igreja só ordena homens, resolve-se facilmente o problema ordenando mulheres. Mas isto não vai resolver o problema do machismo que corre solto pelos corredores da Igreja, e ainda por cima (na minha chutologia) vai liberar os homens de uma das poucas funções no mundo em que eles tem que se doar (quase) tanto quanto as mães se doam.

Ordenar as mulheres me parece uma demanda que atende mais aos interesses de padres relapsos (não que seus defensores sejam necessariamente relapsos) do que os interesses pastorais da Igreja. E não é muito diferente de abandono parental: num mundo em que a grande maioria dos homens abandona os filhos deixando-os sob os encargos exclusivos das mães, é coerente que eles deixem também o peso da batina sobre os ombros das mulheres; mas não é por ser coerente que deixa de ser igualmente errado.

Acho que seria mais justo (porque eu também tenho direito de sugerir minhas teorias malucas) criar uma Ordem das Mães ou ressuscitar (não era para ser um trocadilho sacro) a Ordem das Virgens, que existe mas ninguém fala dela, já que no mundo em que vivemos hoje, a virgindade é como um saldo negativo no banco (o que pouca gente sabe é que o saldo negativo do correntista é um saldo positivo pro banco, porque para ele significa um direito à espera de ser recebido – e no caso do sexo, o indivíduo é o banco; embora esta analogia seja um pouco confusa e muito incerta, já que eu nunca entendi direito isto, seja o sexo ou a contabilidade).

Muito parecido com isto é a questão do aborto. Já li (o que tem cara de fake news, mas eu já li mesmo, só não lembro onde nem quando; e preciso considerar a possibilidade de que eu tenha dado importância a alguma leitura irrelevante, mas) já li que seria melhor para a Igreja retirar o aborto do rol de pecados graves; mas o certo (“certo” segundo a minha opinião) seria mesmo reforçar doutrinas favoráveis às mães, como, por exemplo, dar indulgência plenária pra toda mulher grávida, e depois outra quando parisse, e mais outras periódicas, sei lá, a cada aniversário de um filho, ou quando ele casasse, se tornasse padre, religiosa ou religioso. E poderiam, também, dar uma indulgência plenária no fim da vida para os pais que realmente tenham participado ativa e positivamente tanto da criação dos filhos quanto do bem-estar das mães (porque se é verdade que uma mulher casada e com filhos tenha uma dupla responsabilidade para com os filhos e para com o marido, sendo que os filhos são prioridade em relação a ele, também pode ser muito bem verdade que na igualmente dupla responsabilidade do marido para com os filhos e a esposa a prioridade dele seja ela – uma mulher não vale pelos filhos que tem, mas ter filhos multiplica o valor que, sem eles, já era incomensurável). Valorizar a maternidade e a paternidade dá no mesmo que combater o aborto, mas é muito mais benéfico do que montar acampamento na frente do Pérola Byngton – e dá menos ranço, pelo menos em mim.

Acho que há casos em que a boa disposição de alguém se revela em fatos concretos, e é isso que as pessoas cobram da Igreja quando exigem coisas como ordenação feminina, afrouxamento da doutrina em relação ao aborto e outras coisas do tipo (como vender todos os bens do Vaticano ou acabar com a obrigatoriedade do celibato para os padres).
Mas nem sempre acabar com as regras elimina o problema: talvez, aprofundar ainda mais elas seja mais eficiente.
É mais ou menos isto que acontece quando, por exemplo, o Papa resolve incluir mais uma ocasião em que matar é proibido (retirando a licença para a pena de morte do catecismo), ou quando Cristo diz “Não julgueis que eu vim abolir a Lei ou os profetas. Não vim para os abolir, mas sim para levá-los à perfeição” (Mt 5, 17).

Não que as minhas questionáveis sugestões equivalham a “levá-los [a Lei e os profetas] à perfeição”. Embora eu ache-as válidas (senão não teria sugerido), todas elas foram só para não ficar apenas nos dois primeiros parágrafos.

opinião disfarçada de teoria

Acho que homossexualidade e heterossexualidade são as duas manifestações empíricas da relação sexual, que, por sua vez, é uma das maneiras de vivenciar a sexualidade.

Se o que eu acho estiver correto, então as relações sexuais (heterossexuais e homossexuais) são, em princípio, pecados.

O pecado da manifestação empírica da sexualidade consiste em reduzir a vivência da sexualidade às suas manifestações empíricas, porque uma vivência é muito mais ampla do que suas manifestações empíricas. Seria mais ou menos como reduzir a caridade a dar esmolas (que, segundo a Didaquê, devem suar nas mãos antes de serem dadas).

Não que a relação sexual seja uma esmola, mas ela está para a sexualidade como a esmola está para a caridade (razão e proporção entre conceitos).

Dar esmolas é uma prática frequentemente acusada se ser um desencargo de consciência: quase sempre significa não se importar habitualmente com os outros mas dar umas esmolas para se sentir bom mesmo assim. É possível dar esmola para manifestar a caridade – para manifestar, de forma empírica e tangível – a misericórdia de Deus; e é possível fazer da esmola um modo de reprimir esta misericórdia, ou pelo menos de tentar reprimí-la.

A complexa rede multidimensional de sentimentos, desejos, ideias, conceitos e necessidades que compõe a sexualidade pode ser facilmente ignorada transando, como um analgésico que neutraliza dores, mas neutraliza necessariamente também a sensibilidade.

O Analista de Bagé, um personagem do Luiz Fernando Veríssimo, inventou a Terapia do Joelhaço, que consiste em provocar dores físicas (o joelhaço) até que elas doam mais do que as existenciais. A relação sexual segue a mesma lógica, mas troca a dor pelo pelo gozo físico e tem o mesmo resultado: suspende temporariamente alguma coisa (a complexidade da rede multidimensional da sexualidade, no caso da relação sexual) que volta renovada, a ponto de parecer que é uma (dolorida) novidade.

Segundo a minha opinião disfarçada de teoria profunda, portanto, defender a heterossexualidade ou a homossexualidade é, além de pecado, uma insensatez.

Por mais que eu acredite na doutrina católica de que a relação homossexual é um pecado, eu vejo mais pecados (e na minha opinião mais graves) sendo cometidos em relações heterossexuais. E por mais que eu defenda a mesma liberdade sobre o uso do corpo que os advogados da promiscuidade defendem, eu vejo esta liberdade sendo usada do mesmo jeito por todo mundo a ponto de se assemelhar a uma imposição.

Por isto que defender a homossexualidade ou a heterossexualidade é insensato: enquanto tudo gira em torno de transar, a sexualidade vai se apagando aos poucos, endurecendo cada vez mais as relações – inclusive as sexuais – entre as pessoas.

Mais um Especial de Natal do Porta

Há anos eu leio teorias que aventam a homossexualidade de Cristo, sejam supondo um caso com S. João Evangelista, sejam ponderando que treze homens vivendo juntos só poderiam ser gays. Eu não acredito nestas teorias e acho-as parecidas com as que julgam que o homem nunca foi à Lua ou que a Terra é plana. Dá pra incluir aí a Teoria da Evolução de Darwin, que provavelmente é verdade, mas que compete com os que a negam, e com os que, aceitando-a, extrapolam afirmando que o ser humano veio do macaco – duas posturas opostas mas cujos efeitos práticos e demonstrações de desinformação são as mesmas.

Uma vez eu li que de qualquer texto é possível fundamentar praticamente qualquer interpretação, portanto é até possível inventar uma revelação divina escondida neste texto mesmo – afinal eu também tenho direitos.
Mas se de qualquer texto é possível tirar qualquer interpretação, quanto mais a Bíblia, que, sem deixar de ser Palavra de Deus, é em muitos casos a tradução de uma tradução cheia de imagens e significados de culturas distantes.

Eu compraria todo este celeuma com o especial de fim de ano do Porta dos Fundos se já existisse algum debate generalizado sobre, sei lá, a interpretação da Bíblia, antes de eles lançarem mais um vídeo que, desde o primeiro, tem a intenção mesmo de ser ofensivo. Eles tem outros vídeos, cotidianos, alguns bons, outros ruins, alguns até mais ofensivos que o que dizem deste de final de ano, e outros que, por outro lado, poderiam até ilustrar temas de catequese, por exemplo.

Mas este celeuma todo não é pela ofensividade do vídeo – se fosse, todo mês haveria todo este barulho. E também não é porque retrata Jesus como gay, pois, como eu disse no primeiro parágrafo, esta ideia não é novidade. Este celeuma todo é porque eles tem publicitários competentes que sabem como fazer para chamar a atenção.

A manifestação mais sensata me pareceu a da nota da CNBB, que afirmou ter se sentido – com justiça – agredida, porque os relatos sobre o vídeo sugerem que ele seja mesmo agressivo, sem se limitar a dizer que Jesus era gay; mas, além de afirmar ter se sentido agredida, a CNBB clamou “a todos os cidadãos brasileiros a se unirem por um país com mais justiça, paz, respeito e fraternidade”, depois de reconhecer a autonomia de cada pessoa a reagir conforme a sua consciência.

sexta-feira da segunda semana do Advento

Quando as bruxas eram queimadas em nome de um cristianismo desvirtuado, os dirigentes da Igreja deixaram um flanco aberto por causa de sua omissão, e foi por este flanco que seus sucessores apanharam alguns séculos depois – acusados não mais de omissos, e sim de homicidas. A acusação foi injusta, mas mas a censura ao comportamento dos seus predecessores foi correta. Mesmo que a Igreja alegue, com muita razão, que dentro do contexto da época os dirigentes puseram freios nas Inquisições, a resposta foi tímida, e isso não apaga que posteriormente tenha sido tão difícil um reconhecimento formal de que pelo menos hoje os métodos empregados naquela época eram errados.

As críticas ao comportamento da Igreja no período da Inquisição quase sempre são pelos motivos errados, mas são – igualmente – quase sempre justas. A Igreja não matava, e se é verdade que, pelo contrário, se esforçava para não deixar matar, fazia muitas vistas grossas.

Então veio o pedido de desculpa pela condenação a Galileu, alguns outros pedidos de desculpas por algumas outras coisas e, por fim, chegamos ao ponto em que o Papa mandou retirar do catecismo qualquer hipótese em que o assassinato não seja um pecado.

E aí isto foi um absurdo para alguns, mais apegados às próprias tradições assassinas do que à Tradição da Igreja; também foi muito pouco para outros, que esperam do Papa um pop como o Engenheiros tenta pintá-lo desde os anos 80 (ou O Papa é Pop é dos anos 90? Mas não deve ser nem de antes dos 80 nem de depois dos 90, pelo menos).

Assim a Igreja segue sendo como os meninos do evangelho de hoje, que reclamam por ninguém ter dançado quando tocaram flauta, nem ter chorado quando tocaram canções de luto.

Quando a Igreja parece ser sanguinária, mesmo sem o ser, o problema é a “malvadeza” da Igreja; quando a Igreja parece ser populista (como toda catedral, segundo O Papa é Pop), mesmo sem o ser, o problema é a “liberalidade” da Igreja.

A Igreja, santa pela ação de Deus e pecadora porque são pecadores que a constituem – pois se fossem entrar nela só os santos, seria apenas a Santíssima Trindade dentro dela; esta Igreja santa e pecadora segue Cristo, acerta aqui, erra ali, se deixa corrigir por Deus e segue em frente, indo atrás de Cristo.

Mas as críticas, que devem ser feitas quando forem justas – e estão aí os casos de encobertamento de padres abusadores para lembrar que há, sim, ocasiões para críticas muito justas – às vezes parecem ser motivadas não por erros cometidos pela Igreja e sim por… bem, seria ir pelo mesmo caminho destas críticas tentar adivinhar o que pode estar por trás delas.