Coração

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Não é apenas a abundância material que fecha o coração. Os excessos são um tipo de abundância acessível mesmo para quem não é rico. 

Matéria e espírito não são dois aspectos humanos em oposição, nem valem mais um do que o outro, pelo menos a princípio, pois dedicar-se ao espírito e esquecer-se do corpo enfraquece o espírito, e vice-versa.

Acontece que, à primeira vista, tudo é matéria. A realidade espiritual sempre é observada indiretamente, e no fim das contas precisa tocar a matéria para ser percebida. As nossas almas não aparecem quando nos vemos no espelho nem fazem sombras quando a luz do sol nos toca; e mesmo sendo reais, se não podemos percebê-las, são realidades como um grão de poeira vagando em torno de Júpiter, que existe mas não faz diferença para absolutamente ninguém. Só acessamos as coisas espirituais pelos ouvidos, pelos nossos sentimentos, e pelos efeitos sobre a matéria que a realidade espiritual puder ter.

Assim, fica a impressão de que o que importa mesmo é a matéria, e que a realidade espiritual é secundária, senão dispensável – isto se existir.

Por outro lado, por não ser óbvia, a realidade espiritual requer certa dedicação e esforço que podem se transformar , pela eventual dificuldade, em prioridade, levando alguém a priorizar as coisas espirituais em detrimento das coisas materiais, mesmo que esta pessoa não se dê conta de que continua presa à matéria, pois é através dela que percebe o espiritual.

As riquezas do mundo não se resumem às financeiras, mas a abundância delas fecha o coração porque passam a ocupar, no coração de quem a possui, todos os espaços, incluindo os dedicados às outras pessoas, à espiritualidade e a Deus. Ricos que não compartilham o que tem sõ responsáveis pela má distribuição de renda que leva os outros, que são a maioria, à pobreza; pessoas obcecadas por algum sentimento põem a satisfação do seu desejo em sentir acima dos sentimentos dos outros, e também acima da própria noção de que os outros também são pessoas; até mesmo o sofrimento abundante, que teoricamente ninguém procura, pode fechar o coração do sofredor ao sofrimento alheio, que pode ser menor, mas ainda assim relevante. Do mesmo jeito, a abundância espiritual, que – em um exemplo – oferece apenas uma benção sem nem perguntar se o abençoado tem o que comer em casa, ou até mesmo um lugar para morar, fecha o coração da pessoa espiritualizada que ignorando em si a matéria que não deixa de possuir, ignora as necessidades materiais dos outros que, em certos momentos, são prioridades.

Tudo isto, sejam riquezas, emoções, espiritualidade, etc., são coisas  que têm não apenas o seu valor, mas também a sua necessidade. Mas desassociadas de Deus por nós, acabam tomando espaços que não lhes competem, criando um equilíbrio nocivo e impedindo que Deus desequilibre tudo constantemente, que é o que nos faz participar da ação dele no mundo.

Filtragens desreguladas

 

O aborto é o resultado final de uma sequência de crimes e pecados: a omissão do governo, a violência, o machismo, a ausência de limites, a ausÊncia de infra-estruturas básicas. Tudo isto, cada ponto desta linha do mal pressionando o próximo e sendo pressionado pelo anterior, vai concentrar a somatória de pressões exatamente sobre o ventre da mulher – ou da criança, como no caso da menina de dez anos do Espírito Santo.

Se os grupos de pressão, uma outra linha que também amarrar uma das suas pontas nas mulheres, à altura dos seus ventres, estivessem preocupados com a vida, com Deus ou com as mulheres, não as encontrariam apenas na hora do aborto.

Aliás, não se pode dizer que estes grupos não se preocupem com a vida, Deus ou as mulheres, mas pergunta-se o que eles entendem por estes termos, para conseguirem manter o silêncio enquanto Deus é violentado nas mulheres que sofrem abuso mas não engravidam, nos negros cujas vidas são ceifadas diariamente, nas crianças que são abusadas sistematicamente…

O aborto é, sim, um pecado, e a sua defesa uma violência (espiritual) contra si. Mas é um pecado que, sem perder nada da sua gravidade por isto, é resultado de outros pecados que acontecem cotidianamente, sistematicamente, sem que estes grupos se manifestem contra eles.

Quando eles acordam e reagem, repentinamente, diante da ameaça de um aborto, eles estão coando o mosquito com muito zelo (um mosquito que deveria, sim, ser coado), mas engolem no mais completo silêncio o camelo, sem nunca abaixar o dedo em riste apontado contra outrem, tenha outrem dez ou cem anos.

Cristo não veio para deixar passar o mosquito, e sim para começarmos a não deixar passar o camelo. É necessário se opor ao aborto, mas nada, nem isto, justifica tocar o terror às mulheres, ainda mais às crianças. Se o ardor do amor à vida não for capaz de se mobilizar contra toda a violência prévia ao aborto, o ardor pró-vida só conseguirá queimar tudo a sua volta, numa violência diferente, mas análoga à que pensa combater.

A fé e a dor

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A Providência divina é o “conceito teológico” sob o qual se resume a ideia da proximidade e da atenção de Deus para conosco. Deus interfere em nossas histórias para nos salvar, orienta nossos caminhos e nos livra de perigos.

Mas os os males que se desenrolam em nossas histórias fazem um contraste gigantesco com a presença íntima e ininterrupta de Deus junto a cada pessoa. E continuamos a sofrer os males que, se por um lado, é verdade que poderiam ser piores, por outro, já são suficientemente ruins como foram.

A resposta mais fácil é a do teste da fé: Deus testa a nossa fé com sofrimentos, dores e males para vermos até onde ela vai (porque Deus, que já conhece tudo, conhece também os nossos limites). Mas isto faz de Deus um cientista do mal, demonstrando a nós evidências concretas dos limites da nossa fé com experiências que faz conosco. Portanto, esta resposta não serve.

Talvez seja mais provável que Deus leve o livre-arbítrio a sério, e o mal seja resultado do livre-arbítrio de quem o comete. Deus certamente age para que o mal não domine e nem predomine, impedindo-o, mas as más ações, que produzem este mal, Deus se abstém de impossibilitar. Não que Deus deixe mesmo as más ações correrem soltas, pois há a consciência, e também a voz de Deus no coração de cada um pedindo para que não faça o mal, e sim faça o bem. Mas há obstinados que ultrapassam estas barreiras.

Deus precisa nos socorrer depois do sofrimento quando alguém não aceitou este socorro antes de fazer outrem sofrer. Mesmo que se alegue que quem sofreu também é pecador e, portanto, o sofrimento não foi tão injusto, ainda assim isto é da conta de Deus e não nossa, além do mais ele não deu a ninguém o direito de punir os outros com o sofrimento, e menos ainda com o mal. Por isto que se diz que a liberdade dada por Deus é para fazer o bem, e o uso desta liberdade para o mal é um abuso, e Deus só tolera esta perversidade para cumprir com a promessa de liberdade mesmo quando ela é usada contra Deus (pois o mal causado a qualquer pessoa é também dirigido a Deus, não importam se o malvado não quisesse atingi-Lo).

A fé é o que nos permite ser salvos por Deus, pois, de novo por causa da liberdade, ele não vai obrigar ninguém a se salvar. A fé consiste justamente na garantia desta liberdade, pois não nos prende ao mal e abre nossas portas à ação salvadora de Deus. Portanto a fé não é necessária por causa do sofrimento.

A fé é necessária para que Deus nos socorra nos nossos sofrimentos, mesmo os menores, mas que se torna heróica nos maiores.

O dogma da virgindade de Maria #2

 

 

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O dogma da virgindade de Maria mostra outro aspecto da ação de Deus, além da sua simplicidade desconcertante

Todas as pessoas nascem virgens, mas somente a virgindade feminina, como a de Maria, tem uma marca física, tangenciável, que desaparece quando a virgindade é perdida. Embora fazer sexo não torne alguém uma pessoa adulta, uma relação sexual com uma criança é impossível (pois o nome disto é estupro e será apenas isto mesmo que alguém não chame assim), ou seja, não existe uma criança que não seja virgem. 

Além disto, a infância simboliza, entre outras coisas, a pureza e a inocência, e também é uma condição que Jesus impõe para poder entrar no Reino de Deus. E a virgindade perpétua de Maria é a reverberação da saudação do anjo a ela, “cheia de graça”. Não que ela não tenha se tornado adulta e sofrido como um cão (não só, mas principalmente na Paixão de Cristo), nem que fosse uma mulher infantilizada. Mas esta graça que as crianças possuem (e a possuem até menos do que Maria, que foi concebida sem pecado original) e que, por isto, representam, é perfeitamente simbolizada pela virgindade.

Por isto a virgindade de Maria é uma espécie de redundância dos outros dogmas acerca dela, que já estavam mais ou menos presentes neste da virgindade.

Alguns sistemas elétricos podem ser construídos com redundâncias, dispositivos de proteção que garantem que se a alimentação de algum equipamento for cortada, a energia vai ter outro caminho para chegar até ele, e assim não interromper a alimentação.

A revelação de Deus, realizada em Cristo e registrada pela Bíblia, também possui redundâncias similares (Cristo é o novo Adão, os repetidos perdões de Deus ao povo pecador são imagens efêmeras da redenção definitiva dada a nós por Cristo na Cruz, etc.), que assinalam não só o cumprimento das promessas, mas também a realização delas antes mesmo do cumprimento (pois se a plenitude do cumprimento acontece em Cristo, a redenção, a salvação, o perdão, o amor, etc., de Deus sempre estiveram presentes e operando no mundo).

Os outros três dogmas de Maria (sua Maternidade Divina, sua Imaculada Conceição e sua Ascenção) já estavam presentes no dogma da virgindade de Maria: a pureza da Mãe de Deus, menor apenas que a pureza de Cristo; a concepção totalmente livre e isenta de pecado original; e a continuidade da graça que ela manteve por não ter pecado durante a vida, que a torna digna da Ascenção.

Em si mesmo o dogma é quase insignificante a ponto de parecer até engraçado que alguém tenha se preocupado com isto. Mas a virgindade de Maria é uma espécie de potencialidade que contém em si os outros dogmas acerca dela, que em conjunto testemunham tanto o que precisamos nos tornar (discípulos de Cristo, santos, pessoas que dão à luz a Cristo no mundo, etc.) para a Glória de Deus, um conjunto de testemunhos que se unifica em um só discurso no dogma da virgindade de Maria.

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Os dogmas da Igreja, além dos dogmas marianos, são também testemunhos dos caminhos que Deus abre, como o que abriu para o povo de Deus no Mar Vermelho, para os percorrermos com segurança em direção a Deus (que é a linha de chegada mas ao mesmo tempo caminha conosco). Não é uma segurança fácil, porém, pois o caminho é seguro porque foi aberto por Deus e porque ele o percorre conosco, mas as muralhas de água dos lados são naturalmente assustadoras. Os dogmas estão depositados no leito lamacento do caminho que percorremos em direção a Deus, como seixos que ajudam a firmar os passos e não afundar o pé na lama. Não é possível percorrer este caminho sem sujar os pés nele, como disse o papa Francisco, mas é um caminho de vida que leva, também, à Vida.

O dogma da virgindade de Maria #1

O dogma da virgindade de Maria costuma levar a atenção para a intimidade dela, e particularmente ao estado do seu hímen (“será que ficou intacto na hora do parto?”, “mas como uma criança pode ser concebida sem fazer sexo?” ou “bom, mas depois que Cristo nasceu ela e José…”), fazendo do nascimento de Cristo um enredo de ficção científica: “há muito tempo atrás, em uma galáxia muito distante, as mulheres eram fecundadas por inseminação artificial e pariam em cesáreas, numa sociedade repleta de virgens-mães guerreiras em uma batalha contra o mal…”; sem contar que, se o hímen intacto for mesmo o assunto principal do milagre, finalmente teremos a replicação dos milagres bíblicos em laboratório e a partir daí as portas ficam abertas para inventarem, Deus nos livre disso!, uma religião científica.

Mas dá para tirar alguma coisa mais interessante daí (ou menos desinteressante, porque eu não sou nenhum gênio também) do que o hímen de Maria ou uma sinopse meio plagiada de Guerra nas Estrelas.

No salmo 76/77 (versículos 12 a 20), Deus faz maravilhas, faz as águas tremerem e os abismos se agitarem só de se aproximar deles, a chuva cai e na tempestade se ouve a sua voz entre os trovões, e ainda por cima Deus abre o seu caminho em meio ao mar, uma estrada pelas águas mais profundas, e faz tudo isso sem deixar o menor rastro dos seus passos. Os relatos dos milagres de Deus costumam ser muito exuberantes, como os relatos de super-heróis fazendo coisas incríveis em um filme campeão de bilheteria para combater os inimigos, mas Deus não é um arrasa-quarteirão.

Já no Novo Testamento os milagres de Cristo, apesar de serem impactantes, são mais discretos (a cura de uma hemorragia aqui, de uma mão seca ali, um passeio sobre as águas para um público muito pequeno, quarenta dias de jejum, etc.), exceto talvez no caso de Lázaro. Estes milagres não eram para ser provas de credibilidade (como os dos milagreiros de hoje em dia), mas o cumprimento das promessas de libertação, que Deus improvisa quando não tem jeito, mas que acontece contidianamente nas coisas mais corriqueiras às quais ninguém dá bola por serem corriqueiras.

Essa discrição da ação de Deus serve, primeiro, para ninguém basear sua fé em milagres, que não comprovam a legitimidade de ninguém. Mas também servem para que a nossa participação na ação de Deus no mundo possa acontecer na vida em que nós vivemos, sem que necessariamente tenhamos que sair por aí com um cajado gritando “só Jesus salva” no meio das aglomerações para cumprir nossa missão religiosa. Ou seja, esta discrição da ação de Deus serve para que Deus possa impregnar nossas ações simples e comuns com a força da ação dele, mas sem efeitos especiais nem  resultados verificáveis (pois ninguém vê o sinal dos passos de Deus, conforme o salmo 76/77, inclusive nas ações de Deus casadas às nossas).

A virgindade de Maria é um dogma justamente por isto: o Verbo se fez carne sem deixar indícios do que fez, sem provas nem vestígios do milagre, porque a função do milagre é a salvação e não virar um show barato. A intervenção de Deus é simples, discreta e cotidiana, e a única prova de que alguma coisa tem a ver com Deus é… bom, eu também não sei, porque a ação de Deus não acontece segundo um algoritmo. 

A fé em Deus consiste justamente em ter fé sem depender de provas, evidências e demonstrações. Se às vezes aparece uma ou outra prova (como aquela freira subindo um morro enquanto chovia, e ela pensava “eu saí da minha casa, do meu país, pra vir pra cá cumprir a missão de Deus para ficar andando a pé morro acima abaixo de chuva depois de um dia inteiro trabalhando, meu Deus do céu você não vê que…” e não se sabe o resto do pensamento porque ele foi interrompida pela buzina do carro de um padre do outro lado da avenida, oferecendo para ela uma carona), somos nós que vemos ali uma prova, porque Deus já estava agindo antes dela surgir aos nossos olhos, e vai continuar agindo depois independente da nossa percepção.

Ou seja, o dogma da virgindade de Maria é sobre a simplicidade desconcertante da ação de Deus, que age sem deixar vestígios que comprovem o que ele fez, e da qual a nossa participação depende apenas de um sim a Deus, que muda tudo profundamente enquanto, ao mesmo tempo, mantém tudo no lugar.

O dogma da Mãe de Deus

Enquanto Deus é grandioso, onipotente, inefável (uma palavra que eu nem sei direito o que significa, mas soa bem quando se refere a Deus), nós, humanos, somos humanos, impotentes, etc.

Em torno dos anos 400 as pessoas debatiam como as duas naturezas de Cristo, a humana e a divina, se “acomodavam” em Cristo, afinal era possível que a natureza divina domasse a humana para Cristo fazer o seu trabalho santo, ou que a Segunda Pessoa da Ssmª. Trindade tivesse sequestrado para si o corpo e a alma que estava dentro do útero de Maria depois do seu Sim. Talvez fosse um Cristo internamente dividido, e sua parte humana dissesse “ah, vou deixar o Pai de lado e fugir para morrer em paz”, como muitos anos depois aconselhou Raul Seixas, e a parte divina dissesse “não, vamos em frente!”; talvez a parte humana ficasse quietinha no seu canto, só observando Deus tomar as decisões no seu corpo – as possibilidades são infinitas.

Mas a Igreja decidiu afirmar que as duas naturezas de Cristo, mesmo bem diferentes uma da outra, agiam em harmonia completa, orientadas para o mesmo objetivo, as duas sentindo as mesmas coisas, no mais completo acordo entre si quanto ao que fazer, dizer ou pensar. Afinal, qualquer outra alternativa que não fosse esta faria de Deus um invasor de corpos, ou deixaria Deus confinado em um plano metafísico (como um espírito possuindo um corpo), etc. E o melhor meio de expressar isto é determinar de quem Maria é mãe: da natureza humana que ela gerou? Da natureza divina que gerou ela?

Seria razoável considerar que Maria era mãe de Cristo quanto a sua humanidade, restringindo-se a ser mãe apenas deste aspecto de Cristo. Afinal Deus já existia e ela não gerou Deus. Mas isto redividiria Cristo em dois. Por isto, no concílio de Éfeso a Igreja decidiu que ela era Mãe de Deus.

Quando Maria gerou Cristo, Deus não adentrou um corpo alheio presente no útero de Maria, mas formou um corpo humano, como o de qualquer outro humano, para si – o que faz de Deus também um ser humano tão humano quanto nós. As duas naturezas, a divina e a humana estão tão unidas entre si a ponto de ser impossível dizer uma coisa de uma sem automaticamente estar dizendo o memo da outra. Então, se Maria é mãe de Jesus, necessariamente também é mãe de Deus.

Isto pode soar um tanto quanto ousado, dizer que uma criatura pariu a Deus, amamentou Deus, limpou a (que Deus não me castigue) bundinha suja do Bebê-Deus, mas é isto que a união perfeita das  duas naturezas em Cristo significa: Deus não veio a nós como um extraterrestre, mas como um ser humano terráqueo comum, sem no entanto deixar de ser Deus eterno e todo-poderoso, criador do céu e da Terra e por aí vai.

Maria ser mãe de Deus significa que a presença de Deus é mais do que um símbolo, uma representação, uma alegoria ou uma metáfora, mas é tão real e concreta quanto qualquer coisa real e concreta que possa existir. Isto é necessário para não fazer de Deus um Deus alheio, ocupado em lustrar o seu trono divino que pode até vir nos salvar, quem sabe, mas depois de regar o jardim divino e fazer uma inspeção celeste enquanto a gente se vira por aqui.

Por isto que se é verdade que Cristo é a água viva que nos sacia e o alimento que nos dá a vida, também é verdade que quem patrocina isto, por uma graça de Deus, é Maria, que nos oferece seu Filho.

O dogma da Imaculada Conceição de Maria

 

 

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Normalmente o dogma da Imaculada Conceição de Maria está associado à necessidade de que o corpo humano que gestaria o corpo humano-divino de Cristo deveria ser tão puro e santo e santo quanto pode ser um ser humano, então, para não macular o corpo do Filho de Deus, a sua mãe foi preservada, por uma graça de Deus, do pecado original.

No documento em que proclama este dogma, o papa ressalta que, no fim das contas, foi uma graça “desnecessária” dada por Deus a Maria, pois Deus é Deus mesmo que nascesse de uma pecadora.

Como todos estes textos não são estudos sobre os dogmas, mas a minha opinião sobre o significado deles, a minha opinião é que:

a) por muitos e muitos anos as mulheres foram associadas a Eva como a tentadora de Adão. São Paulo também diz isto em alguma de suas cartas mas este deveria ser um assunto apenas secundário, sem muito valor, como o vinho que o apóstolo recomenda que (se não me engano) Tito beba com frequência ou a capa que ele pede para que não sei quem traga não sei de onde o apóstolo a esqueceu. É um assunto menor porque, ao mesmo tempo em que Eva pode ser, sim, considerada a tentadora de Adão, Adão poderia muito bem ter sido associado à fraqueza de quem cai em tentação e portanto não merece confiança – ou a merece tanto quanto quem o tentou. A maldade que reina no coração humano facilmente associa Eva à tentação, responsabilizando tacitamente, por esta associação, as mulheres pela violência que sofrem dos homens, como se, assim como Eva tentou Adão, toda e qualquer mulher, por extensão, fosse uma tentadora de homens por definição. Uma argumentação destas pode até um dia ter feito algum sentido, pois não se pode contar sempre com a inteligência de quem argumenta nem de quem aceita um argumento assim. Mas ao afirmar a Imaculada Conceição de Maria, o que nem precisava de argumento para ser defendido, que é o absoluto respeito às mulheres, agora tem. A má-fé de quem se utiliza das imagens religiosas consiste, também, em exigir uma contra-argumentação religiosa. Um sujeito que justifique, nem que seja apenas para si, que fez o mal que fez (ou que apenas pense o mal que pensa) porque, afinal, está diante da impureza de Eva, normalmente não aceita o que é apenas óbvio (ou “inscrito por Deus na consciência humana” na linguagem das doutrinas da Igreja) e não vai se convencer, portanto, apenas pela sensatez de que a culpa da violência é de quem a comete e não de quem a sofreu (uma pessoa pode se colocar em situações de perigo e ser responsabilizada por isto, mas este é o caso de um acidente, de algum infortúnio, e uma pessoa que comete uma violência não é um acidente e nem um infortúnio). Assim, o dogma da Imaculada Conceição é o argumento irrefutável contra quaisquer desculpas que recorram a associação das mulheres com Eva – um argumento irrefutável porque o dogma é, por si mesmo, irrefutável: se no Antigo Testamento Eva era a imagem da mulher, a imagem feminina do Novo Testamento é Maria, concebida sem pecado original e, portanto, sem associação nenhuma da feminilidade à impureza nenhuma. Não que todas as mulheres sejam Maria, mas a partir da sua Imaculada Conceição qualquer ideia que se faça do que seja a feminilidade não inclui mais associação alguma com pecados, impurezas e tentações nesta ideia.

b) o outro significado é que recebemos de Cristo a promessa de nos livrarmos de todo e qualquer pecado graças a sua ressurreição. Mas esta libertação do pecado não é somente o fim da história, pois está também no seu início. Se a história da salvação passa, logo em seus primórdios, pelo pecado original (sob o jugo do qual ainda vivemos, pois o batismo elimina o pecado original mas não a fragilidade que ele deixa na alma), o ato final desta história que começa no Novo Testamento começa por uma graça, a Imaculada Conceição de Maria, dada tão gratuita e livremente por Deus a ela como as graças  que ele nos dá.

O dogma de Nossa Senhora da Assunção

 

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Os dogmas católicos servem para esclarecer questões obscuras relevantes para a fé. Por exemplo, diante da possibilidade de alguém conceber Cristo como uma espécie de semi-deus com capacidades sobre-humanas e usar isto como motivo para se isentar de viver como Cristo, há um dogma afirmando que sua humanidade não é diferente da nossa (exceto pelo pecado original, que aliás é outro dogma) e que ele se utilizou dos mesmos recursos que temos à disposição na nossa própria humanidade; isto, porém poderia levar a fazer de Cristo um ser humano heróico, incomum, singular, realmente incrível e evoluído, mas somente humano, e então há outro dogma afirmando a plena divindade de Cristo, que é não um símbolo ou um representante de Deus, mas é o próprio Deus se tornando humano, vivendo, morrendo e ressuscitando por nós. 

Sendo plenamente humano e plenamente divino (o que não o transformou numa terceira coisa, segundo outro dogma), Cristo tanto viveu quanto morreu por nós, e ressucitou pelo mesmo motivo. Isto garante a igualdade de condições, mas também ressalta a divindade dele, da qual podemos participar sem, no entento, possuí-la.

Mas a promessa da ressurreição, mesmo tão próxima de nós, mais do que a própria morte (que é uma condição e não uma promessa nem um objetivo em si), ainda assim soa distante, afinal Cristo, mesmo plenamente humano, voltou para onde estava antes, e só Deus sabe quando (literalmente) a parcela da humanidade que não é ao mesmo tempo Deus (e que corresponde a todos que não sejam o próprio Jesus Cristo) vai inaugurar o céu. Cristo ressuscitou abrindo o caminho para a ressurreição, mas nenhuma de suas criaturas humanas chegou lá ainda, vai saber se isto não é uma emboscada.

Aqui entra a assunção de Maria, celebrada no domingo passado. Embora Deus não precisasse ser conduzido por ninguém até nós, veio conduzido por ela, como um filho conduzido pela mãe, reafirmando que na temporalidade que começa a etenidade (ou seja, o Reino de Deus que é o nosso futuro não está exclusivamente lá nesse futuro, mas já começa aqui, no tempo que um dia vai acabar).

Assim como ela conduziu Deus à humanidade, o dogma da assunção de Maria afirma que ela é a primeira humana como nós, que não somos Deus, a chegar lá como todos estaremos um dia, ressuscitados de corpo e alma no Reino de Deus.

A primeira exclusivamente humana a viver no Reino de Deus é Maria, o que justifica ainda a fé na intercessão dela por nós, que assim como recebeu Deus em meio à humanidade, agora está lá para receber a humanidade junto a Deus – afinal dificilmente alguém poderia sustentar que ela fosse passar o início da própria vida eterna despreocupada com quem ainda não chegou, e embora a nossa condução ao Reino de Deus seja, digamos assim, operacionalizada por Deus mesmo, a intercessão de uma criatura que agora vê a Deus como sempre foi vista por ele (cf. 1Cor 13,12), que pede a Deus não com a fé, mas na plenitude da realização da vida, cause mais impacto que nossas próprias intercessões, ainda condicionadas pela parcialidade da fé que é o que temos agora.

E é um contrassenso que ainda haja qualquer ilusão de superioridade fundamentando o machismo e a opressão por parte dos homens em relação às mulheres, pois é uma mulher, tão mulher quanto aquelas que tantos deles consideram inferior, que está esperando eles lá.

Fé dogmática

A modernidade trouxe a humanidade à razão com a mesma falta de critérios que a geração anterior teve com a religião. Não que razão e religião sejam duas faces da mesma moeda, mas tanto a razão quanto a religião, usadas ou vividas sem critérios, se transformam (figuradamente) em armas de destruição em massa.

Se a religião antigamente pecava (como força de expressão) por negar a razão, a modernidade peca (idem) por negar a religião. A cristandade (no ocidente, bem como Islã e o judaísmo no Oriente Médio) pagaram pela negação. A modernidade também.

Quanto mais a modernidade tenta varrer a religião para baixo do tapete como se fosse o resto do lixo deixado pelas gerações anteriores, mais o ímpeto religioso reage convulsivamente vivendo à margem das estruturas da modernidade, causando uma outra reação convulsiva racional (que tem seus espasmos apesar da aparente frieza), ambas as reações dirigidas uma contra a outra, e assim ambas dão-se as mãos na cultura de morte.

A Igreja Católica (que não é a única religião, mas é a que eu mais conheço mal – porque as outras eu conheço pouco e conheço mal) tem entre suas doutrinas os dogmas que eventualmente podem despertar sentimentos de repulsa nos dias atuais, ou desprezo, talvez escárnio, também. Mas são estes dogmas que impedem que a religião na Igreja se torne um instrumento de opressão – a condição de pecadores é um dogma, por exemplo, esquecido por pessoas como Torquemada ou os cruzados que, agindo como paladinos da justiça divina, apenas confirmaram o dogma em suas ações, o que ao menos deveria servir para relembrá-los disto.

Que o aborto seja um pecado é inegável, mas a frente anti-aborto não lembra, ou talvez não saiba, que também é composta por pecadores tão pecadores quanto seus oponentes. Seus meios de atuação, mesmo bem-intencionados nos seus fins, trazem à tona outra doutrina católica (que não sei se é dogmática – mas nem tudo precisa ser dogma para estar correto) que diz que os fins não justificam os meios.

Assim como é pecado abortar, o terrorismo também é. Deus que é Deus todo-poderoso age na base do amor e não do terror, e poderia, sendo Deus todo-poderoso, tocar o terror se quisesse. Se por um lado é verdade que a mera consciência (do dogma) de que somos pecadores, por si só, não serve para corrigir ninguém, serve como ponto de partida para, ao menos, questionar se a cruzada moral em que nos envolvemos está dentro de parâmetros religiosos e racionais aceitáveis. Particularmente no que diz respeito à religião, São Paulo, uma espécie de Tony Stark apostólico (se os apóstolos fossem os Vingadores), foi lá e conversou com os hereges, pagãos e descrentes de todo o tipo – e não consta  que foi formar um cordão de isolamento em volta dos templos pagãos.

A razão é, apesar de parecer o contrário, muito mais bem distribuída do que a religião (outra doutrina católica: Deus deu a capacidade da razão a todos os seres humanos junto com a vida), pois a religião, mesmo que possa ser esboçada pela razão, precisa ser revelada (pois do contrário continua sendo razão). Isto significa que é mais fácil religiosos serem racionais do que o contrário – ou talvez menos difícil, pelo menos.

Embora os dogmas sejam revelações extraídas da Palavra de Deus, não são inferências racionais, e por isto são dogmas, ou seja, verdades (como as verdades racionais) mas de fé. E se os dogmas fossem um pouco mais bem conhecidos e estudados, especialmente pelos fiéis religiosos, isto evitaria cenas como as do domingo passado.

Se as verdades (dogmáticas) religiosas tem precedência sobre as verdades da razão, isto não significa que (com raras exceções entre as quais não se conta o terrorismo) quem conhece e acredita nas verdades religiosas tenha autorização para agir como animais irracionais. Por mais que conheçamos a verdade, a conhecemos “como se víssemos por um espelho” (parafraseando 1Cor 13,12), e isto, já que a caridade parece não servir como argumento, deveria servir para que “o bom combate” contra o pecado seja feito com prudência, e não se servindo de pecados para combater outros pecados.

A vida antes da vida

Apesar de ter criado não só tudo o que existe, mas também a vida que há na criação, Deus ainda é acusado de ter sido, no Antigo Testamento, uma espécie de assassino exterminador sanguinário. Sendo Deus a Vida e tendo compartilhado-a com o ser humano que criou, Deus também insiste (apesar das acusações) em manter a vida de quem criou e vivificou.

Neste trecho de Ezequiel, Deus ainda deixa claro, de maneira literal, objetiva e direta, que a morte não é seu negócio, mas sim a vida. Muitas vezes o caminho de conversão, e o caminho da pós-conversão também, é um corredor apertado feito com paredes de espinhos, mas os espinhos, que foram criados por Deus, é verdade, no entanto não foram colocados por ele lá. Fomos nós (coletivamente, não eu ou você) que colocamos ou deixamos colocar estes espinhos lá, e se é verdade que a morte não é uma consequência necessária da liberdade, também é verdade que é consequência de escolhas possíveis (embora não recomendadas) possibilitadas pela nossa liberdade. Mas a conversão é converter-se à vida, onde a morte, como uma muralha inevitável que limita a vida, foi ultrapassada por Cristo na sua ressurreição – e a conversão consiste justamente em não deter-se nos muros da morte durante a vida, e ultrapassar a grande muralha da morte ao fim da vida, outrora intransponível, seguindo os passos de Cristo.

Nestes tempos de intolerância, quando muitos de nós erguem muros de intolerância fatal contra negros, indígenas, homossexuais, mulheres, crianças, idosos, estrangeiros, pobres e qualquer outra pessoa que ameace o resquício de poder vazio que possuem, Deus não só tolera os fomentadores da morte como também insiste em oferecer-lhes a conversão à vida.

Esta vida que Deus nos oferece já nos foi dada, primeiro na criação do mundo, e depois na ressurreição de Cristo (a árvore da vida, preterida em prol da outra árvore por Adão e Eva e então inacessível a partir de sua queda, agora tem seus frutos à nossa disposição). Se esta vida se parece com uma obra do governo inaugurada às pressas para ganhar votos, é porque Deus (que não inaugura nada às pressas e não depende destes artíficios para ganhar votos) nos quer construindo, junto a ele, a vida inacabada que temos. 

A julgar pela eficiência da cultura de morte que construímos com os dons que Deus nos deu, se usarmos esses dons para a construção da vida que Deus pede de nós, ela pode ficar maravilhosa.

Um caso de poliamor

 

 

Deus passou a maior parte do Antigo Testamento atrelando o povo eleito a si, em um interminável jogo de traição-perdão-fidelidade, onde o povo traía Deus, que ia na contramão mantendo-se fiel e perdoando, então o povo prometia uma fidelidade que, vê-se depois, não iria manter.

De tanto trazer o povo a si, em Cristo Deus decidiu vir até o povo, e mais ainda: em vez de atrelá-lo como outrora, atrelou-se ele próprio a este povo, tornando-se mais um membro dele. Integrando-se ao seu próprio povo como apenas mais um membro, Cristo viveu as alegrias, as tristezas, as vitórias e as dificuldades do povo junto a ele, mas sendo ao mesmo tempo Deus, salvou-o ao morrer pela vida deste mesmo povo, do qual é Senhor e ao mesmo tempo integrante, ainda que rejeitado como antes.
Nestes tempos em que se problematiza vivências como o poliamor, temos São Maximiliano Maria Kolbe seguindo os passos de Cristo por amor a um homem, e não só a ele, mas também a sua mulher e sua família – a quem o santo amou a ponto de repetir de forma literal a entrega de Cristo, morrendo por quem tanto amou.
Assim como o de Cristo, o poliamor do santo não viu aí vantagem nenhuma para si. Prescindindo de qualquer envolvimento sexual ou desejo frustrado, poliamou mais do que qualquer tipo de amante jamais poderia sonhar em amar – apesar de este amor estar aí, disponível para quem quer que seja.
Todas as formas de amor – mesmo a de Maximiliano Maria Kolbe – são tentativas de amar; mas somente poderão ser fecundas e transformarem-se mesmo em amor além da tentativa na medida em que florescerem no poliamor de Cristo que brotou na sua Paixão e morte cruz.

∞ Ao infinito, e além ∞

 

 

O perdão tem benefícios psicológicos muito grandes, e talvez o mais óbvio deles  seja se libertar do ressentimento que mantém quem nos ofendeu tão próximo do nosso coração quanto quem amamos. Sem contar a nobreza do ato, que sendo uma virtude, contribui para fortalecer o caráter e, por isto, contribuir para com o desenvolvimento coletivo.

Nada disto faz o perdão uma atitude fácil, mas seus benefícios compensam de longe as dificuldades. Aliás, é tão difícil que Pedro achou melhor perguntar para Cristo quantas vezes deveria perdoar alguém, pois até mesmo naquele tempo deveria ter gente insuportável. É uma equação difícil entre a capacidade ilimitada de nos ofenderem e a paciência limitada que possuímos, e Pedro precisava saber, digamos assim, o resultado: talvez sete? Cristo oferece outro: setenta vezes sete.

Mas a parábola a seguir, da disparidade entre o homem que devia muito, teve sua enorme dívida perdoada e depois não foi capaz de perdoar a dívida irrisória que outro tinha com ele. O final da história foi trágico.

A parábola mostra mais do que as contas de Cristo e de Pedro quais são os limites do perdão: Deus. Deus é ilimitado, e sua capacidade de perdoar talvez não tenha limites, ou talvez até tenha, mas ainda assim seria um limite muito maior do que o nosso. Mais do que os benefícios psicológicos e a correção das atitudes, o perdão é um dom de Deus, tanto quando nos perdoa, quanto quando nos dá a capacidade de perdoar, não sete ou setenta vezes sete, mas até o limite em que o próprio Deus pode perdoar.

A proteção de Deus

É necessário salvar o mundo, mas qualquer todas as propostas de salvação que não incluam a participação de Deus acabam deteriorando o mundo ainda mais, mesmo sem querer.

Seja o materialismo que distorce a Teologia da Libertação (que não é em si materialista), seja a afetação de pureza dos conservadores (entre outras coisas), é muito fácil cair na tentação de querer fazer o bem sem incluir Deus no meio disto.

É esta tentação que alguém como Bolsonaro, por exemplo, explora, mesmo que mencione Deus na sua propaganda. Se houver uma ameaça comunista no Brasil, o que eu duvido, não é o liberalismo materialista dele que vai salvar o país – nem o desprezo pela ciência ou o incentivo ao ódio contra os outros que ele promove.

Se as consequências políticas deste desespero são até mesmo fatais, como provam as cem mil mortes (sem contar os que não morreram por causa da pandemia), individualmente este desespero dilacera qualquer pessoa.

E qualquer pessoa pode se lembrar que devemos agir como neste salmo, fazendo junto com Deus o que é possível e deixando Deus resolver ele mesmo o que não é. Esta proteção de Deus, se for reconhecida, impede o desespero que se expressa  em “levantar de madrugada ou à noite retardar o seu repouso”, e também de eleger um filisteu disfarçado de herói.

Possibilidades de si

 

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Por que preservamos nossos nomes? Por hábito, exclusivamente por hábito. (…) E, finalmente, porque é agradável falar como todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é apenas uma maneira de falar.” (Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1, p. 10)

 

Não sabemos quem somos e a única maneira de lidar com isto é não afirmar a identidade – a não ser como Deleuze e Guattari, por hábito e para poder se fazer compreender.

Ter consciência de que não sabemos quem somos é importante para não caírmos na mentira de quem nos diga que sabe e pode nos revelar, mas ainda assim é um jogo perigoso, pois a tentação de se apegar  a uma identidade sempre possível, sempre ideal e sempre fictícia prevalece com facilidade em momentos de maior fragilidade. É necessário saber mudar, mas também é necessário lembrar  que mudamos de um hábito para outro, de uma maneira de falar para outra, de uma maneira de compreender-se para outra, em projetos de identificação sempre parciais.

Converter-se e se tornar criança, que Cristo coloca como condição para entrar no Reino dos Céus, é necessário para que estejamos sempre disponíveis a encontrar nossas verdadeiras identidades que permanecem resguardadas apenas nele, pois só em Cristo é possível encontrar-se a si próprio (o que explica, em parte, a leitura do evangelho de sexta-feira, onde Cristo diz que quem quiser salvar sua vida vai perdê-la, mas quem perdê-la por ele vai encontrá-la, pois Cristo está falando explicitamente da vida, é claro, mas também se aplica à identidade). Somente as crianças admitem que não sabem quem são e compreendem que sua identidade é, no fim das contas, uma brincadeira.

Converte-se e tornar-se criança, porém, não é fazer da identidade apenas uma brincadeira, mas conseguir ao mesmo tempo obtê-la e desapegar-se dela, como as crianças brincando, em um desapego que não é ser indiferente à identidade, mas sim em atenção à identidade, a nossa verdadeira identidade, que vai se revelando em nós à medida em que Cristo vai se revelando a nós.