A supremacia da caridade

Dos Sermões do Bem-aventurado Isaac, abade do mosteiro de Stella
(Sermo 31: PL 194,1292-1293)
(Séc. XII)

Por que, irmãos, somos tão pouco solícitos em buscar ocasiões de salvação uns para os outros? Tão pouco cuidadosos em mais ajudarmo-nos mutuamente onde a necessidade for maior em carregar os fardos dos irmãos? O Apóstolo a isto nos exorta dizendo: Carregai os fardos uns dos outros e cumprireis assim a lei de Cristo; e em outro lugar: Suportando-vos reciprocamente na caridade. É esta, na verdade, a lei de Cristo.

Se há em meu irmão – seja por indigência seja por fraqueza corporal ou de educação – alguma coisa de incorrigível, por que não a suporto com paciência, e não a levo de bom grado? Pois está escrito: Seus filhos serão levados aos ombros e consolados no regaço? Não será porque me falta aquela caridade que tudo sofre, que é paciente para suportar e benigna para amar?

Certamente esta é a lei de Cristo, dele que assumiu verdadeiramente nossas enfermidades pela paixão e suportou nossas dores pela compaixão, amando os que carregava, carregando os que amava.
Quem ataca o irmão em necessidade, quem põe armadilhas de qualquer tipo à sua fraqueza, está, sem dúvida alguma, sujeito à lei do demônio e a obedece. Sejamos então compassivos uns pelos outros, amantes da fraternidade, pacientes com as fraquezas, perseguidores dos vícios.

Toda vida que se preocupa sinceramente com o amor de Deus e, por ele, com o amor do próximo, é mais aprovada por Deus, sejam quais forem suas observâncias ou seus usos religiosos. A caridade é aquela em vista da qual tudo se deve fazer ou não fazer, mudar ou não mudar. É ela o princípio e o fim que devem regular tudo. Nada é culpável quando feito por ela e em conformidade com ela.

Oxalá ela nos seja concedida por aquele a quem não podemos agradar sem ela, pois sem ele nada absolutamente podemos, ele que vive e reina, Deus, pelos séculos infindos. Amém.

Toma consciência da dignidade de tua natureza

Dos Sermões de São Leão Magno, papa
(Sermo in Nativitate Domini 7,2.6: PL 54,217-218.220-221)
(Séc. V)

Tendo nascido, Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro homem, que jamais deixou de ser Deus verdadeiro, iniciou em si uma nova criação. Na figura do seu nascimento, ele entregou ao gênero humano um princípio segundo o espírito. Que inteligência poderá compreender este mistério? Que lábios o poderão contar? A iniquidade voltou à inocência, a velhice, à novidade, filhos alheios são adotados como próprios, e estranhos têm parte na herança!

Acorda, ó homem; toma consciência da dignidade de tua natureza. Recorda-te de teres sido feito à imagem de Deus que, embora corrompida em Adão, foi recriada em Cristo. Portanto, usa de modo justo das criaturas visíveis, como gozas da terra, do mar, do céu, do ar, das fontes, dos rios e tudo quanto neles achas de belo e de admirável. Por tudo dá louvor e glória ao Criador!

Aprecia com os sentidos do corpo a luz material. Com toda a intensidade do espírito abraça aquela verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo e à qual se refere o Profeta: Aproximai-vos dele e sereis iluminados e vossos rostos não se cobrirão de confusão. Se somos templo de Deus e se o Espírito de Deus habita em nós, o que qualquer fiel possui no coração é muito maior do que tudo quanto se admira no céu.

Caríssimos, não vos estamos sugerindo ou aconselhando a desprezardes as obras de Deus ou a julgardes haver algo contrário à vossa fé nos bens criados pelo Deus de bondade. Nós vos exortamos, porém, a usardes com medida e discernimento da beleza de toda criatura e dos valores do universo, pois Aquilo que se vê é temporário, como diz o Apóstolo, quanto ao que não se vê, é eterno. Por conseguinte, nascidos para as realidades presentes, renascidos, porém, para as futuras não nos entreguemos aos bens temporais, mas estejamos atentos aos eternos. Para percebermos mais de perto nossa esperança, pensemos sobre o que a graça divina trouxe à nossa natureza. Ouçamos o Apóstolo: Estais mortos e vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com ele na glória. Ele que vive e reina com o Pai e o Espírito Santo por todos os séculos dos séculos. Amém.

«O Senhor é criador do mundo e protege o seu povo»

João Paulo II, quarta-feira, 29 de agosto de 2001 (sobre Jt 16,1-2.13-15)

O Cântico de louvor que acabamos de proclamar é atribuído a Judite, uma heroína que se tornou o orgulho de todas as mulheres de Israel, porque a ela coube exprimir o poder libertador de Deus num momento dramático da vida do seu povo. Deste seu cântico, a liturgia das Laudes faz-nos recitar apenas alguns versículos. Eles convidam a fazer festa, cantando em sintonia de vozes, tocando timbales e címbalos, para louvar o Senhor que “põe fim às guerras” (v. 2).

Esta última expressão, que define o verdadeiro rosto de Deus que ama a paz, introduz-nos no contexto em que nasceu o hino. Trata-se de uma vitória alcançada pelos Israelitas de maneira totalmente surpreendente, por obra de Deus que intervém para os subtrair à perspectiva de uma derrota iminente e total.

O Autor sagrado reconstrói este acontecimento alguns séculos mais tarde, a fim de oferecer aos irmãos e irmãs na fé, tentados pelo desencorajamento numa situação difícil, um exemplo que os possa animar. Desta forma, recorre ao que acontecera em Israel quando Nabucodonosor, irritado com a indisponibilidade deste povo perante os seus projetos de expansão e as suas pretensões idolátricas, enviara o general Holofernes com a tarefa bem definida de o dominar e aniquilar. Ninguém devia resistir a ele, que reivindicava as honras de um deus. E o seu general, compartilhando a sua presunção, desprezara a admoestação, que também ele recebera, de não atacar Israel, porque seria como ofender o próprio Deus.

Em última análise, o Autor sagrado deseja recordar precisamente este princípio, para confirmar os crentes do seu tempo na fidelidade ao Deus da Aliança: é preciso ter confiança em Deus. O verdadeiro inimigo que Israel deve temer não são os poderosos desta terra, mas a infidelidade ao Senhor. Ela priva-o da proteção de Deus e torna-o vulnerável. Ao contrário, quando é fiel o povo pode contar com a própria força de Deus, “magnífico no seu poder e invencível” (cf. v. 13).

Este princípio é maravilhosamente ilustrado por toda a história de Judite. O cenário é o da terra de Israel já invadida pelos inimigos. Do cântico emerge a dramaticidade deste momento: “O assírio veio das montanhas do norte com a multidão dos seus guerreiros. A sua multidão secava as torrentes, e a sua cavalaria cobria os vales” (v. 5). A arrogância efêmera do inimigo é realçada com sarcasmo: “Ele jurara incendiar o meu país, e passar ao fio de espada a minha juventude, e roubar os meus filhos, e levar as minhas filhas para o cativeiro” (v. 6).

A situação descrita pelas palavras de Judite é parecida com outras vividas por Israel, nas quais a salvação chegara quando parecia que já não havia caminhos de salvação. Não acontecera assim também a salvação do Êxodo, na passagem prodigiosa através do Mar Vermelho? Também agora o assédio por parte de um exército numeroso e poderoso tira qualquer esperança. Mas tudo isto só evidencia o poder de Deus, que se manifesta como um protetor invencível do seu povo.

A obra de Deus é muito mais luminosa, porque Ele não recorre a um guerreiro ou a um exército. Como outrora, no tempo de Débora, eliminara o general cananeu Sísera por meio de Jael, uma mulher (cf. Jz 4, 17-21), agora serve-se de novo de uma mulher inerme para ajudar o povo que se encontra em dificuldade. Firme na sua fé, Judite aventura-se até ao acampamento inimigo, seduz com a sua beleza o comandante e executa-o de maneira humilhante. O Cântico põe em grande evidência este fato: “O Senhor Todo Poderoso feriu-o, e entregou-o nas mãos de uma mulher que lhe cortou a cabeça. O seu chefe não caiu diante de jovens, nem foram heróis nem gigantes corpulentos que se lhe opuseram, mas foi Judite, filha de Merari, que o perdeu com a formosura do seu rosto” (Jdt 16, 5-6).

A figura de Judite tornar-se-á depois o arquétipo que permitirá não só à tradição hebraica, mas também à cristã, realçar a predileção de Deus por tudo o que é considerado frágil e débil, mas que precisamente por isso é escolhido para manifestar o poder divino.

Ela é uma figura exemplar também para exprimir a vocação e a missão da mulher, chamada à igualdade com o homem, de acordo com as suas características específicas, a desempenhar um papel significativo no desígnio de Deus. Algumas expressões do livro de Judite serão adotadas, de modo mais ou menos integral, pela tradição cristã, que verá na heroína hebraica uma das prefigurações de Maria. Não se sente talvez um eco dos tons de Judite quando, no Magnificat, Maria canta: “Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 52)? Por conseguinte, compreende-se como a tradição litúrgica, familiar aos cristãos quer do Oriente quer do Ocidente, gosta de atribuir à Mãe de Jesus expressões que se referem a Judite, como as seguintes: “Tu és a glória de Jerusalém, tu és a alegria de Israel, tu és a honra do nosso povo” (Jt 15, 9).

Partindo da experiência da vitória, o cântico de Judite concluiu-se com um convite a elevar a Deus um cântico novo, reconhecendo-o “grande e glorioso”. Ao mesmo tempo, admoestam-se todas as criaturas a permanecerem submetidas Àquele que com a sua palavra fez todas as coisas e as plasmou com o seu espírito. Quem pode resistir à voz de Deus? Judite recorda-o com grande ênfase: perante o Criador e Senhor da história, os fundamentos dos montes serão abalados e as rochas derreter-se-ão como a cera (cf. Jdt 16, 15). São metáforas eficazes para recordar que todas as coisas são “nada”, face ao poder de Deus. E contudo este cântico de vitória não quer amedrontar, mas confortar. De fato, Deus oferece o seu poder invencível em apoio de quantos lhe são fiéis: “Aqueles que Vos temem serão verdadeiramente grandes aos vossos olhos” (ibid.).

«O sacrifício de Abraão»

Das Homilias sobre o Gênesis, de Orígenes, presbítero
(Hom. 8,6.8.9: PG 12,206-209)
(Séc. III)

Abraão tomou a lenha do sacrifício e colocou-a sobre os ombros de seu filho Isaac. Tomou na mão o fogo e o cutelo, e foram ambos juntos. Ora, Isaac, carregando a lenha para o próprio holocausto, é uma figura de Cristo carregando sua cruz. No entanto levar a lenha para o holocausto é ofício de sacerdote. Torna-se então ele mesmo a vítima e o sacerdote. O que se segue: e foram ambos juntos refere-se a essa realidade, porque Abraão, como sacrificador, leva o fogo e o cutelo; mas Isaac não vai atrás e sim a seu lado, para que se veja que, juntamente com ele, exerce igual sacerdócio.

E depois? Disse Isaac a seu pai Abraão: Pai! Neste momento, uma palavra assim parece uma tentação. Como terá abalado o coração paterno esta palavra do filho que ia ser imolado! Mesmo endurecido pela fé, Abraão responde com voz branda: Que queres, filho? E ele: Vejo o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto? Abraão respondeu: Deus providenciará uma ovelha para o holocausto, meu filho.

Impressiona-me a resposta cuidadosa e prudente de Abraão. Não sei o que via em espírito, pois responde olhando para o futuro e não para o presente: Deus mesmo providenciará uma ovelha. Assim fala do futuro ao filho que indaga pelo presente. O Senhor providenciava para si um cordeiro em Cristo.
Abraão estendeu a mão para pegar a faca e imolar o filho. O anjo do Senhor chamou-o do céu, dizendo: Abraão, Abraão. Respondeu ele: Eis-me aqui. Tornou o anjo: Não toques no menino nem lhe faças nenhum mal. Agora sei que temes a Deus. Comparemos estas palavras com as do Apóstolo a respeito de Deus: Ele não poupou seu Filho, mas entregou-o por todos nós. Vede Deus rivalizando com os homens em magnífica generosidade. Abraão, mortal, ofereceu a Deus o filho mortal, que não morreria então. Deus entregou à morte por todos o Filho imortal.

Olhando Abraão para trás, viu um carneiro preso pelos chifres entre os espinhos. Dissemos acima, creio, que Isaac figurava Cristo e, no entanto, também o carneiro parece figurar Cristo. É muito importante ver como ambos se relacionam a Cristo: Isaac que não foi morto e o carneiro que o foi. Cristo é o Verbo de Deus, mas o Verbo se fez carne.

Padece, portanto, Cristo, mas, na carne; morre enquanto homem do qual o carneiro é figura; já dizia João: Eis o Cordeiro de Deus que tira os pecados do mundo. O Verbo, porém, permanece incorrupto, isto é, Cristo segundo o espírito; a imagem deste é Isaac. Por isto ele é vítima e também pontífice segundo o espírito. Pois aquele que oferece a vítima ao Pai, segundo a carne, este mesmo é oferecido no altar da cruz.

«O Senhor proclama solenemente a sua palavra»

João Paulo II, quarta-feira, 13 de junho de 2001

Alguns estudiosos consideram o Salmo 28, que acabamos de recitar, como um dos textos mais antigos do Saltério. É poderosa a imagem que o sustém no seu desenvolvimento poético e orante: de fato, estamos perante o desencadear progressivo de uma tempestade. Ela é marcada no original hebraico por uma palavras, qol, que significa ao mesmo tempo “voz” e “trovão”. Por isso alguns comentadores deram ao nosso texto o título de “Salmo dos sete trovões”, devido ao número de vezes que essa palavra nele é repetida. Pode dizer-se, com efeito, que o Salmista concebe o trovão como um símbolo da voz divina que, com o seu mistério transcendente e inatingível, irrompe na realidade criada chegando ao ponto de a perturbar e amedrontar, mas que no seu significado mais profundo é palavra de paz e de harmonia. Aqui o pensamento vai para o capítulo 12 do IV Evangelho, onde a voz que, do céu, responde a Jesus, é entendida pela multidão como um trovão (cf. Jo 12, 28-29).

Ao propor o Salmo 28 para a oração das Laudes, a Liturgia das Horas convida-nos a assumir uma atitude de profunda e confiante adoração da Majestade divina.

São dois os momentos e os lugares aos quais o cantor bíblico nos conduz. No centro (cf. vv. 3-9) encontra-se a representação da tempestade que se desencadeia a partir da “extensão das águas” do Mediterrâneo. As águas marinhas, aos olhos do homem da Bíblia, encarnam a desordem que atenta contra a beleza e o esplendor da criação, chegando a corrompê-la, a destruí-la e a abatê-la. Por conseguinte, temos na observação da tempestade que se enfurece, a descoberta do poder imenso de Deus. Quem reza vê o furacão que se desloca para norte e cai na terra firme. Os cedros altíssimos do monte Líbano e do monte Sirion, chamado outras vezes Hermon, são arrancados pelos raios e parecem saltar sob os trovões como animais amedrontados. Os estrondos aproximam-se, atravessam toda a Terra Santa e descem para sul, nas estepes desérticas de Kades.

Após esta visão de grande movimento e tensão somos convidados a contemplar, por contraste, outro cenário que é representado no início e no final do Salmo (cf. vv. 1-2.9-11). Ao assombro e ao medo contrapõe-se agora a glorificação adorante de Deus no templo de Sião.

Há quase um canal de comunicação que une o santuário de Jerusalém com o santuário celeste: nestes dois âmbitos sagrados há paz e eleva-se o louvor à glória divina. O barulho ensurdecedor dos trovões é substituído pela harmonia do cântico litúrgico, o terror pela certeza da proteção divina. Agora Deus aparece “dominante sobre a tempestade” como “rei para sempre” (v. 10), isto é, como o Senhor e o Soberano de toda a criação.

Diante destes dois quadros antitéticos o orante é convidado a realizar uma dupla experiência. Em primeiro lugar, deve descobrir que o mistério de Deus, expresso no símbolo da tempestade, não pode ser apreendido e dominado pelo homem. Como canta o profeta Isaías, o Senhor, semelhante ao esplendor ou à tempestade, irrompe na história semeando pânico em relação aos perversos e aos opressores. Sob a intervenção do seu juízo, os adversários soberbos são destronados como árvores atingidas por um furacão ou como cedros despedaçados pelas flechas divinas (cf. Is 14, 7-8).

Nesta luz é evidenciado aquilo que o pensador moderno (Rudolph Otto) qualificou como o tremendum de Deus, ou seja, a sua transcendência inefável e a sua presença de juiz justo na história da humanidade. Ela ilude-se em vão ao pensar que pode opor-se ao seu poder soberano. Também Maria exaltará no Magnificat este aspecto do agir de Deus: “Exerceu a força com o Seu braço e aniquilou os que se elevavam no seu próprio conceito. Derrubou os poderosos dos seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1, 51-52).

Mas o Salmo apresenta-nos outro aspecto do rosto de Deus, o que se descobre na intimidade da oração e na celebração da liturgia. Segundo o pensador mencionado, é o fascinosum de Deus, ou seja, o fascínio que provém da sua graça, o mistério do amor que se propaga no fiel, a segurança serena da bênção reservada para o justo. Até perante a confusão do mal, das tempestades da história, e da própria cólera da justiça divina, o orante se sente em paz, envolvido pelo manto de proteção que a Providência oferece a quem louva a Deus e segue os seus caminhos. Através da oração chega-se à consciência de que o verdadeiro desejo do Senhor consiste em conceder a paz.

No templo é restabelecida a nossa apreensão e cancelado o nosso terror; nós participamos na liturgia celeste com todos “os filhos de Deus”, anjos e santos. E sobre a tempestade, semelhante ao dilúvio destruidor da maldade humana, curva-se então o arco-íris da bênção divina, que recorda “a aliança eterna concluída entre Deus e todos os seres vivos de toda a espécie que há na terra” (Gn 9, 16).

É esta, principalmente, a mensagem que se realça na leitura “cristã” do Salmo. Se os sete “trovões” do nosso Salmo representam a voz de Deus no universo, a expressão mais nobre desta voz é aquela com que o Pai, na teofania do Batismo de Jesus, revelou a Sua identidade mais profunda como “Filho muito amado” (Mc 1, 11 e par.). São Basílio escreve: “Talvez, e de maneira mais mística, “a voz do Senhor sobre as águas” ecoou quando veio uma voz do alto ao Batismo de Jesus e disse: Este é o Meu Filho muito amado. Então, de fato, o Senhor pairava sobre muitas águas, santificando-as com o Batismo. O Deus da glória ecoou do alto com a voz poderosa do seu testemunho… E podes também entender como “trovão” aquela mudança que, depois do Batismo, se realiza através da grande “voz” do Evangelho” (Homilias sobre os Salmos: PG 30, 359).

«A alma sedenta do Senhor»

João Paulo II, quarta-feira, 25 de abril de 2001

O Salmo 62, no qual nos detemos para refletir, é o Salmo do amor místico que celebra a adesão total a Deus, partindo de um anseio quase físico e chegando à sua plenitude num abraço íntimo e perene. A oração faz-se desejo, sede e fome, porque envolve a alma e o corpo. Como escreve Santa Teresa de Ávila, “a sede exprime o desejo de algo, mas um desejo tão intenso que perecemos se dele nos privamos” (Caminho de perfeição, c. XIX). Deste Salmo, a liturgia propõe-nos as primeiras duas estrofes, que estão centradas precisamente nos símbolos da sede e da fome, enquanto a terceira estrofe faz oscilar um horizonte obscuro, do juízo divino sobre o mal, em contraste com a luminosidade e a candura do resto do Salmo.

Então, iniciemos a nossa meditação com o primeiro cântico, o da sede de Deus (cf. vv. 2-4). É a aurora, o sol que está a nascer no céu obscuro da Terra Santa, e o orante começa o seu dia, indo ao templo para buscar a luz de Deus. Ele tem necessidade daquele encontro com o Senhor de maneira quase instintiva, dir-se-ia “física”. Assim como a terra árida é morta, enquanto não for irrigada pela chuva, e assim como nas fendas do terreno ela se parece com uma boca dessedentada e seca, assim o fiel aspira por Deus para ser por Ele saciado e poder assim existir em comunhão com Ele.

O profeta Jeremias já tinha proclamado: o Senhor é “fonte de águas vivas”, reprovando o povo por ter cavado “cisternas rotas, que não podem reter as águas” (2, 13). O próprio Jesus exclamará em voz alta: “Se alguém tem sede venha a mim e beba… que acredite em mim” (Jo 7, 37-38). Em plena tarde de um dia ensolarado e silencioso, Ele promete à mulher samaritana: “Quem beber da água que Eu lhe der, jamais terá sede, porque a água que Eu lhe der se tornará nele uma nascente de água a jorrar para a vida eterna” (Jo 4, 14).

No que diz respeito a este tema, a oração do Salmo 62 relaciona-se com o cântico de outro Salmo maravilhoso: “Assim como a corça suspira pelas correntes de água, assim também a minha alma suspira por Vós, ó meu Deus. A minha alma tem sede do Senhor, do Deus vivo” (41, 2-3). Pois bem, na língua do Antigo Testamento o hebraico a “alma” é expressa com o termo nefesh, que nalguns textos designa a “garganta” e em muitos outros chega a indicar todo o ser da pessoa.

Compreendido nesta acepção, o vocábulo ajuda a entender como é essencial e profunda a necessidade de Deus; sem Ele faltam a respiração e a própria vida. Por isso, o Salmista chega a pôr em segundo plano a própria existência física, se vier a faltar a união com Deus: “O vosso amor é mais precioso do que a vida” (62, 4). Inclusivamente no Salmo 72, repetir-se-á ao Senhor: “Além de Vós, nada mais anseio sobre a terra. A minha carne e o meu coração já desfalecem, mas o Senhor é para sempre a rocha do meu coração e a minha herança… o meu bem é estar perto de Deus” (vv. 25-26 e 28).

Depois do cântico da sede, eis que se modula nas palavras do Salmista o cântico da fome (cf. Sl 62, 6-9). Provavelmente, com as imagens do “lauto banquete” e da saciedade, o orador remete para um dos sacrifícios que se celebravam no templo de Sião: o sacrifício chamado “de comunhão”, ou seja, um banquete sagrado em que os fiéis comiam a carne das vítimas imoladas. Outra necessidade fundamental da vida é aqui utilizada como símbolo da comunhão com Deus: a fome é saciada quando se escuta a Palavra divina e se encontra o Senhor. Com efeito, “o homem não vive somente de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3; cf. Mt 4, 4). E aqui o pensamento do cristão corre para aquele banquete que Cristo preparou na última noite da sua vida terrestre, e cujo profundo valor Ele já tinha explicado durante o discurso de Cafarnaum: “A minha carne é, em verdade, comida e o meu sangue é, em verdade, bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue fica em mim e eu nele” (Jo 6, 55-56).

Através do alimento místico da comunhão com Deus, “a alma une-se a Ele”, como declara o Salmista. Uma vez mais, a palavra “alma” refere-se a todo o ser humano. Não é sem motivo que se fala de um abraço, de um abraço quase físico: Deus e o homem já estão em plena comunhão, e dos lábios da criatura não pode brotar senão o louvor jubiloso e agradecido. Mesmo quando estamos na noite escura, sentimo-nos protegidos sob as asas de Deus, como a arca da aliança é coberta pelas asas dos querubins. E então floresce a expressão extática da alegria: “Exulto à sombra das vossas asas”. O medo dissolve-se, o abraço não se aperta ao vazio, mas ao próprio Deus, enquanto a nossa mão se entrelaça com o poder da Sua direita (cf. Sl 62, 8-9).

A partir de uma leitura do Salmo à luz do mistério pascal, a sede e a fome que nos impelem para Deus encontram a sua satisfação em Cristo crucificado e ressuscitado, de Quem chega até nós, mediante o dom do Espírito e dos Sacramentos, a vida nova e o alimento que a sustém.

É o que nos recorda João Crisóstomo que, comentando a anotação joanina: do lado “saiu sangue e água” (cf. Jo 19, 34), afirma: “Aquele sangue e aquela água são símbolos do Batismo e dos Mistérios”, ou seja, da Eucaristia. E conclui: “Vedes como Cristo atraiu a si mesmo a esposa? Vedes com que alimento Ele nos nutre a todos nós? Fomos formados e somos nutridos pelo mesmo alimento. Com efeito, assim como a mulher nutre aquele que ela gerou com o próprio sangue e leite, assim também Cristo alimenta continuamente com o seu sangue aquele que Ele mesmo gerou” (Homilia III, destinada aos neófitos, 16-19 passim: SC 50 bis, 160-162).

«A atividade humana»

Da Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo de hoje, do Concílio Vaticano II
(N. 35-36)
(Séc. XX)

A atividade humana origina-se no homem e para o homem se ordena. De fato, ao trabalhar, o homem não apenas modifica os seres e a sociedade, mas aperfeiçoa-se a si também. Aprende muitas coisas, desenvolve suas faculdades, sai de si mesmo e se supera.

Este crescimento, se bem entendido, vale muito mais que toda a riqueza que possa ajuntar. O homem vale mais pelo que é do que pelo que tem.

Igualmente, tudo quanto os homens fazem para obter maior justiça, fraternidade mais larga e uma ordem mais humana nas relações sociais, tem maior valor do que os progressos técnicos. Estes podem proporcionar base material para a promoção humana, mas, por si sós, não conseguem realizá-la.

Esta é, pois, a norma da atividade humana: que corresponda ao genuíno bem da humanidade, de acordo com o desígnio de Deus, e permita ao homem, como indivíduo ou como membro da sociedade, a plena realização de sua vocação.

Contudo, muitos contemporâneos parecem temer um vínculo muito estreito entre a atividade humana e a religião. Vêem nisso um perigo para a autonomia das pessoas, das sociedades e das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas entendemos que toda criatura e as sociedades gozam de leis e de valores próprios, que o homem deve gradualmente reconhecer, utilizar e organizar, tal exigência de autonomia é plenamente legítima. Não só é exigida pelos homens de hoje, mas concorda com a vontade do Criador. Em virtude mesmo da criação todas as coisas possuem consistência própria, verdade, bondade, leis e ordens específicas. Deve o homem respeitá-las reconhecendo os métodos próprios de cada ciência e técnica.

Seja-nos, portanto, permitido deplorar certas atitudes existentes mesmo entre cristãos, insuficientemente advertidos da legítima autonomia da ciência, que levaram, pelas tensões e controvérsias suscitadas, muitos espíritos a julgar que a fé e a ciência se opõem.

Se, porém, por “autonomia das realidades temporais se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem qualquer referência ao Criador, quem reconhece a Deus não pode deixar de perceber a que ponto é falsa esta afirmação. Porque, sem o Criador, a criatura se reduz a nada.

Johnson & Johnson dribla condenações por talco cancerígeno nos EUA

A matriz da Johnson & Johnson, sediada em Nova Jersey, está explorando brechas legais na legislação norte-americana para reduzir os gastos com indenizações a clientes que desenvolveram câncer causado pelo uso de talcos contaminados com amianto.

Sede da Johnson & Johnson

A estratégia legal consiste em criar uma subsidiária responsável pelas indenizações, mas é uma solução que torna o processo mais longo e costuma resultar em pagamentos parciais ao credores.

O talco é um mineral que ocupa a posição mais baixa na Escala (de dureza) de Mohs e frequentemente é encontrado em locais onde também há amianto nas proximidades, ficando por isto suscetível à contaminação.

Diante de estudos contraditórios e inconclusivos sobre os riscos do talco e de recolhimentos de lotes com produto contaminado, a empresa considera que as condenações foram injustas, e que as informações sobre a insegurança do talco são desinformações e alegações infundadas, apesar de ter interrompido as vendas de talco para bebê desde 2020 nos EUA.

Fontes: Reuters, BBC Brasil e Olhar Digital. (Imagem: Wikimedia)

Escritório de representação taiwanês nos EUA pode ser renomeado

Uma ofensiva legislativa protagonizada por alguns democratas e republicanos nas duas casas do congresso norte-americano pretende renomear o Escritório de Representação Econômica e Cultural de Taipei, atual nome do que é de fato a embaixada de Taiwan nos EUA, para Escritório de Representação de Taiwan.

O nome atual é utilizado nas representações taiwanesas em países que não reconhecem oficialmente a independência de Taiwan, mas mantém relações diplomáticas e comerciais extraoficiais com a ilha.

Tanto a China (cujo nome oficial é República Popular da China) quanto Taiwan (cujo nome oficial é República da China) atribuem cada qual a si próprio a legitimidade sobre todo o território chinês, seja o continental ou o insular, e consideram o outro governo ilegítimo.

A China foi fundada em 1912 e compreendia parte do mesmo território continental atual e a Mongólia. No fim da Segunda Guerra anexou o conjunto de ilhas que hoje é o território taiwanês. Em 1949 o Partido Nacionalista Chinês perdeu a guerra civil para o Partido Comunista Chinês e transferiu sua capital para Taipé. Desde então os dois governos disputam a China entre si.

Fontes: Reuters e Wikipedia. (Imagem: Wikimedia)

Nicarágua cassa universidades e organizações civis

A Asamblea Nacional de Nicaragua (equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil) aprovou a cassação da personalidade jurídica de cinco universidades nicaraguenses a pedido do Ministerio de Gobernación do páis (equivalente ao Ministério da Justiça brasileiro).

As cinco universidades funcionam sob a Ley 89, que reconhece a função social de centros de ensino superior, sejam eles privados ou públicos, e por isto garante o acesso livre e gratuito dos cidadãos aos estabelecimentos de ensino enquadrados nesta lei.

O governo fundamentou a decisão no descumprimento de procedimentos burocráticos que as universidades, no entanto, disseram terem sido cumpridos, mas tiveram a documentação inexplicavelmente recusada pelo governo, motivo pelo qual suspeitam que a causa das recusas e cancelamentos seja o potencial que estes centros de ensino têm para divergir de Ortega, como alguns deles já o fizeram em outras ocasiões.

Além das universidades, outras organizações civis, como a Asociación de Cantautores Nicaragüenses e a Cáritas diocesana de Estelí, por exemplo, também tiveram seus registros cancelados pelo governo.

Fontes: VOA, Artículo 66, La Prensa e Confidencial. (Imagem: Wikimedia)

Brasil deixou “passar a boiada” na fiscalização ambiental em 2021

Uma análise dos dados divulgados na última terça-feira revelou que o IBAMA gastou menos da metade do orçamento de 219 milhões de reais disponibilizados após pressão na Cúpula do Clima de 2021.

Na reunião entre líderes de 40 países, a pressão de Europa e Estados Unidos serviu para o presidente brasileiro diminuir, na época, o tom das críticas ao que considera excessos na aplicação de leis ambientais, e cumprir o compromisso de aumentar o investimento em proteção ambiental, o que concretizou-se com o acréscimo no orçamento do IBAMA.

Mas a agência utilizou menos da metade do seu orçamento nas fiscalizações em campo, gastando em outras áreas como aquisição de equipamentos, por exemplo, o que levou a uma devastação na Amazônia de uma área equivalente à do estado norte-americano de Connecticut.

Enquanto o IBAMA prefere mensurar a atenção ao meio ambiente apontando o valor comprometido ao órgão, o Observatório do Clima considera mais eficaz apontar os valores gastos e pagos – pois a disponibilidade financeira por si só não impediu que em 2021 a devastação tenha sido a maior dos últimos 15 anos.

Fonte: Reuters (imagem: D24am)

Peru proíbe temporariamente Repsol de descarregar óleo no país

A empresa afirmou que é responsável por 40% do combustível peruano e que fará o necessário para não desabastecer o mercado, além de considerar a medida descabida e desproporcional.

O governo peruano proibiu temporariamente a Repsol de descarregar petróleo no país após um gigantesco vazamento que a empresa atribui às inesperadas consequências da erupção do vulcão em Tonga.

O governo peruano, por sua vez, pretende manter a proibição enquanto não houverem garantias técnicas de que outro vazamento pode ser evitado, enquanto trabalha em um processo Internacional contra a empresa, que tem quatro executivos impedidos pela justiça de sair do país pelos próximos 18 meses.

Fonte: Reuters

Juíza norte-americana nega favorecimentos para os assassinos de Ahmaud Arbery

Uma juíza norte-americana negou um acordo que previa o cumprimento de parte da pena de dois assassinos de Ahmaud Arbery em prisões federais, costumeiramente menos brutais do que as estaduais.

A sentença de nível estadual condenou os três, mas permitiu que um deles pudesse recorrer em liberdade. Ao enfrentar o julgamento em nível federal, a defesa dos outros dois conseguiu um acordo que permitiria o arranjo menos desfavorável, em troca da confissão deles.

A juíza levou em consideração os apelos da mãe, para quem a aceitação do acordo seria como permitir que os assassinos cuspissem na cara dela depois de terem matado seu filho.

Fonte: Reuters