João Paulo II sobre o salmo 142/143

– O inimigo persegue a minha alma, *
ele esmaga no chão minha vida
– e me faz habitante das trevas, *
como aqueles que há muito morreram.
– Já em mim o alento se extingue, *
o coração se comprime em meu peito!

Salmo 142(143), 3-4

“2 O Salmo começa com uma intensa e insistente súplica dirigida a Deus, fiel às promessas de salvação oferecidas ao povo (cf. v. 1). O orante reconhece que não tem qualquer mérito para fazer valer e, portanto, pede humildemente a Deus que não o julgue (cf. v. 2). Em seguida, ele fala sobre a situação dramática, semelhante a um pesadelo mortal, em que se está a debater: o inimigo, que é a representação do mal da história e do mundo, levou-o até ao limiar da morte. Com efeito, eis que está prostrado no pó da terra, que já é uma imagem do sepulcro; eis as trevas, que constituem uma negação da luz, sinal divino de vida; eis, por fim, “os mortos de há muito tempo”, ou seja, os que já passaram (cf. v. 3), entre os quais ele parece ter sido relegado.

3 A própria existência do Salmista está ameaçada: já lhe falta a respiração e o seu coração parece um bloco de gelo, incapaz de continuar a bater (cf. v. 4). O fiel, prostrado por terra e espezinhado, só tem as mãos livres, que se elevam para o céu num gesto que é, ao mesmo tempo, de pedido de ajuda e de procura de socorro (cf. v. 6). Efetivamente, o seu pensamento corre ao passado, em que Deus realizou prodígios (cf. v. 5). Esta centelha de esperança aquece o gelo do sofrimento e da provação, em que o orante se sente mergulhado, prestes a desfalecer (cf. v. 7). Em todo o caso, a tensão é sempre forte; mas um raio de luz parece vislumbrar-se no horizonte. Assim, passamos à outra parte do Salmo (cf. vv. 7-11).”

João Paulo II, quarta-feira, 9 de Julho de 2003

Guerra justa e o conflito na Ucrânia

Breve contextualização (descaradamente parcial e fundamentada nas interpretações do que eu acho que me lembro de ter lido sobre os envolvidos)

A única justificativa aceitável da Rússia para invadir a Ucrânia, excluindo as desculpas esfarrapadas de lutar contra o neonazismo e a corrupção, é deter um avanço ainda maior da OTAN em direção às fronteiras russas, que já se avizinham na Noruega, e também na Geórgia, que a Rússia anexou (criminosamente) e faz divisa com a Turquia, sem contar ainda Kaliningrado, um território russo separado do resto do país que faz fronteira com a Lituânia e a Polônia. Se apenas a Ucrânia e a Finlândia entrarem para a OTAN, somente o sul da Rússia não ficaria cercado por aliados norte-americanos, atrapalhando muito o regime de envenenamentos e invasões de Putin para manter-se no poder.

A OTAN lembra muito os comensais da morte reunidos em torno de Voldemort nos tempos em que todos estavam em Hogwarts, “fracos em busca de proteção, ambiciosos em busca de alguma glória compartilhada e bandidos gravitando em direção a um líder que lhes mostrasse formas mais refinadas de crueldade”, embora o princípio de formação da OTAN seja simples e bem-intencionado: mexeu com um mexeu com todos.

A Ucrânia tem uma clara preferência por ser explorada pelos EUA, via OTAN, em vez de ser explorada pela Rússia, que já faz isso desde os tempos dos czares, o que não parece uma má ideia (escolher a OTAN), se considerar que as suas alternativas se resumem a dois males mutuamente excludentes.

Princípios católicos da guerra justa

O Catecismo da Igreja Católica apresenta os princípios de uma guerra justa no número 2309:

– que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidade de nações seja duradouro, grave e certo;
– que todos os outros meios de lhe pôr fim se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes;
– que estejam reunidas condições sérias de êxito;
– que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves do que o mal a eliminar. O poder dos meios modernos de destruição tem um peso gravíssimo na apreciação desta condição.

CIC, Amarás o teu próximo como a ti mesmo.

A Rússia parece satisfazer os últimos três requisitos, mas não o primeiro, já que sua única intenção é manter a OTAN distante do oeste do país, e a agressividade (quase sempre) passiva da OTAN não justifica a agressão contra a Ucrânia.

A Ucrânia está apenas se defendendo, se bem que impedir os homens de deixar o território e estimular civis a combaterem são medidas indefensáveis sem precisar recorrer a nenhum catecismo nem qualquer princípio religioso que seja, já que isto faz com que o sofrimento e o risco de morrer recaiam sobre a população ucraniana. A impressão que isto dá é que se fosse a Ucrânia no lugar da Rússia, a Ucrânia faria o mesmo, mas nem isto justifica a invasão agressiva russa.

A OTAN não está matando ninguém (neste conflito em particular) enquanto dá à Ucrânia condições de matar um punhado dos inimigos de ambos enquanto os ucranianos, armados ou não, arriscam suas vidas contra o exército russo.

Considerando os envolvidos e a doutrina católica de guerra, quem parece estar errando muito é a OTAN, a Ucrânia, a Rússia e também os princípios católicos da guerra justa.

Ou é guerra ou é justa

Desde o papa Bento XV que a ideia de uma guerra justa vem perdendo a força. Talvez fosse até possível discutir a legitimidade desta doutrina quando o que se entendia por “guerra” eram bandos armados de espadas se enfrentando (mas a conclusão já deveria ter sido a mesma, que não há guerra justa). Não é que não hajam argumentos para entrar em uma guerra, mas todos eles passam longe de qualquer princípio cristão (nem o trecho do “venda sua capa e compre uma espada” serve aqui, já que pelo menos neste caso não se tem notícias de mortos por alguma espada perdida, embora seja necessário atropelar todo o restante do Evangelho para comprar até mesmo uma espada com base nesta passagem).

Se o papa Francisco vem cada vez mais deslegitimando esta doutrina, é porque as palavras de Cristo não mudam, mas o entendimento que se tem delas não apenas pode como deve evoluir, à exemplo da tolerância à pena de morte.

O único objetivo da guerra é a morte, e a morte não gera nem a justiça, nem a paz, pelo contrário, “O fruto da justiça semeia-se na paz para aqueles que praticam a paz.” (Tg 3,18)

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Trecho da Imitação de Cristo

«Não te glories da riqueza, se a tens, nem dos teus amigos, se são poderosos; mas em Deus que dá tudo e, sobretudo, deseja dar-se a si mesmo.

Não te envaideças do tamanho e da formosura do corpo, pois a mais leve enfermidade o deforma e corrompe.

Não te desvaneças da tua habilidade e do teu talento para que não desagrades a Deus, de quem procede tudo o que, naturalmente, tiveres de bom.

Não te julgues melhor que os outros, para que, aos olhos de Deus que conhece o que há no homem, não sejas tido pior. Não te comprazas de tuas boas obras, porque os juízos dos homens diferem muito dos juízos de Deus, a quem desagrada, muitas vezes, o que àqueles contenta.»

A Imitação de Cristo, cap. 7 (pgs. 29-30)

Imagem: postagem do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros no Twitter.

Canção

Lado a lado a esperança e a agonia.;
uma dúvida, é minha única certeza.
Antes, a vida era igual, todo dia.
Não mais... E não colocas as cartas na mesa....

As tuas cartas, são um mistério.;    
e nem mesmo sei se há algum jogo!
Um dia, agora passa lentamente...
todo dia: esperança e dúvida de novo...

E num dia o céu sorri: sim, ela também!!
Amanhã, quem sabe o que verei então...
Mas posso dizer, de qualquer jeito: não me enganei,
outra vez e para sempre é teu meu coração.

Poesia de 15 de outubro de 2002 (o que eu espero que sirva como desculpa). Imagem: Photo by Joel Filipe on Unsplash.

Dois trechos de História da Igreja no Brasil – período colonial

A terceirização da evangelização no Brasil colonial

«Por concessão da Santa Sé, os reis de Portugal gozavam do direito de padroado sobre as novas colônias portuguesas. Deste modo os monarcas se constituíram como verdadeiros chefes espirituais das novas terras, por delegação do Papa. (…) Na realidade, tais privilégios levavam normalmente a uma identificação entre colonização e cristianização. (…) Assim os monarcas portugueses pensavam em criar no Brasil um Estado cristão, tendo como religião oficial o catolicismo. A missão deste Estado cristão era subjugar e incorporar os indígenas à cultura portuguesa e à religião cristã.
O espírito de cruzada domina a colonização portuguesa. (…)
Ser cristão, em última análise, é adotar a cultura portuguesa. (…)
Outra consequência lógica dessa mentalidade é que a religião é reconhecida mais por limites territoriais do que por marcos espirituais.» (pgs. 156-158)

O estado de guerra permanente sob o disfarce da paz no Brasil colonial

«Em resumo, a política do Brasil era essencialmente uma política local. A coroa sempre manteve uma duvidosa ambiguidade em assuntos políticos, de um lado ouvindo com paternal solicitude as queixas dos que apelavam para ela, como por exemplo os jesuítas, em numerosa correspondênca, do outro lado nunca enfrentando os senhores locais (o famoso princípio do “poder moderador” de Pedro II), pois estes eram na realidade seus melhores colaboradores. Por isso a coroa nunca permitiu nem podia permitir tratados de paz entre africanos e colonizadores, indígenas e colonizadores. Há dois casos interessantes neste particular: um, por ocasião da guerra contra os potiguares no Rio Grande do Norte, quando ambas as partes começaram a se mandar embaixadas como se faz numa guerra “regular”. A coroa, consultada, reagiu de maneira taxativa (1692): não se fazem embaixadas de paz com os índios pois estes não são cristãos mas gentios. O outro caso se deu com os africanos aquilombados em Palmares. Começaram a ser enviadas embaixadas de paz de ambos os lados, houve trocas de presentes, a coroa foi consultada. Em 7 de fevereiro de 1686 veio a resposta por carta régia: os africanos foragidos vivem em pecado mortal, são revoltosos contra a vontade de Deus, e não se faz paz com os inimigos de Deus. Aliás, esta foi igualmente a opinião de Antônio Vieira, consultado por um colega seu que quis evangelizar os quilombolas de Palmares.
Estes episódios demonstram o medo que reinava no centro do império português, Lsboa, no fnal do século XVII, e que exprimia a insegurançada administração central. Muto mais seguros estavam os senhores locais que, numa sociedade de extrema oposição social como é a sociedade escravocrata, mantiveram a única política segura e eficiente: a de manter o estado de guerra permanente sob o disfarce da paz. (…) Na realidade, a paz dos engenhos era fruto da “entrega da personalidade do escravo nas mãos do senhor”, conforme comentou Joaquim Nabuco. Este estado de guerra permanente era exercido de três modos, basicamente: pelos castigos, pela espionagem, pela religião.» (pgs. 256-257)

Eduardo Hornaert et al. História da Igreja no Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo: primeira época, período colonial.

Imagem: Wikimedia